quarta-feira, maio 30, 2007

Duvi-dê-ó-dó!

Vez por outra Zito Corrente é comparado a um desconhecido. Fulanos e sicranos e beltranos da vida anunciam aos alísios que ele tem a cara de um tal Ricardo, o jeito e o modo de falar de um Albuquerque Prado, que é igualzinho àquele amigo bulhufas ou sem tirar nem pôr como Armandinho Rouxinol. Sente-se o tipo mais comum da face esplêndida deste planeta ou, pior hipótese, um pitecantropo ordinário – algo como macaco de imitação quase homem. Um tanto amuado e solitário, Zito cogita umas pitadas em fumos feiticeiros e, zoado do espírito, levar um lero bruxo para tentar esclarecer em que furo da evolução ele se situa.

Vai então ao Terreiro do Pai Joá, o pai-de-santo mais badalado das redondezas, para uma consulta. Em meio ao gesso das estátuas e à iluminação pálida, Pai Joá figura volumoso, gordo de não caber em si. Ele incorpora o espírito de Darwin, que com voz encrespada solta pausadamente: duvi-dê-ó-dó!

O espírito prossegue

- Duvido que o Ricardo tenha a mania de cheirar os dedos da mão depois de ter cutucado as unhas do pé; que o Albuquerque Prado coma as próprias caspas; que o amigo bulhufas de quem quer que seja lamba perebas como quem se lambuza na papaia e que o Armandinho Rouxinol faça bolinhas de remelas e cravos com tanto prazer e glória.

Zito Corrente arregala os olhos. Ele está arruinado com tanto atrevimento exclamativo, com tanta revelação. Deixa o terreiro e dá início a uma mudança radical em sua vida. A partir de então, começa a anotar todos os suspiros, chispas, entrecortes, prestar atenção no mínimo movimento de cada coisa, na mínima ziquizira. Torna-se poeta e casa-se com Lúcia Pitélia, mais conhecida como Xodozeira.

Hoje acredita que esse papo de igualzinho é um modo de exercício coloquial da ingenuidade. Tem outras assimilações do saborodor das lâminas córneas, da polpa de secreções, das películas escamosas, feridas imprecisas, afecções sebáceas, da espessura das crostas. Acredita também na chuva miudinha, no folhelho fino com que se enchem os colchões e nas maisventuras do viver. Tudo é farinha da terra, de guerra, de pau, de rosca. Vitamina branca e fina para a escrita. Fé no sentimento e na palavra, que vai para o papel com a tinta da entrega.

Acredita igualmente no amor de Xodozeira. Com ela, montou um lar, família e teve doze filhos. Nenhum deles se parece com Zito. E a primeira palavra que todos eles aprenderam a falar foi duvi-dê-ó-dó.

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sexta-feira, maio 25, 2007

Papa-mosca

O amor tem dentes. Por onde passam correntes, como se a boca do amor fosse o eixo de uma grande embarcação. Boca de hálito impuro, aragem das descobertas. As linhas da língua revelam os traçados mais insanos, as volúpias mais queridas. No céu há toda uma galáxia de curas, que explode e brilha por trás do arco-da-aliança que risca a gengiva. O arco tem cores nunca experimentadas; cores que cantam blues e assopram canivetes de isopor.

A boca do amor é gigante. Masca por séculos as criaturas que se entregam. Engole sem o menor esforço as sobras que o próprio amor provoca. Os lábios oferecem a lascívia do tempo e da carne. E basta um beijo para deformar ou refazer o juízo. O beijo da boca do amor é um ponto de interrogação do tamanho das dúvidas que o coração bombeia. E o coração em dúvida é do tamanho de uma mosca.

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segunda-feira, maio 21, 2007

O Amor de um ignorante

Associar para se ver mais. Amigar idéias e sentidos corpóreos, estrelar atitudes enviesadas; na vertigem do que o outro traz, na rasteira forma de simpatia.

Quero associar para viver, em pleno e em erro, uma lógica-comunhão fértil. Sempre assim desde pequeno quando todos os botões deslizavam pelo compensado verde que cheirava a talco. Então, estar junto, febre alta, mútua insistência, elo com o que se perde, sementes escuras, medo em lugar de tudo, sonhos secos, árvores que crescem para dentro, cismas que crescem como árvores.

Estar junto dependência, o outro vira uma droga. Estar junto aparência, o outro-espelho se quebra. Estar vivo e sentir vivo o pus das falas inflamadas, o rasgo cirúrgico que nada opera. A ferida sem cor a brilhar como graxa em couro, travestida neste tal de passado – nosso rol de visitas insanas.

E quando se quer apenas passear. Apenas um selo coadjuvante do que se tiver de mais genuíno para dar, mesmo que não seja algo tão bom. Quando se quer apenas, depois da ausência, mínimas presenças, gotas de qualquer sentimento porque saudade também é planta. E o que se tem é um vício, uma aposta que já nasce endividada. O que se tem é o cansaço de insistir na nasalidade que a curta expressão negativa oferece.

Não. É a bandeira colorida do amor. Não. O algo predestinado, fatal e lerdo. Não. A culpa anchieta, a amargura uterina, a muda voz interior. Não. O desastre ecológico na floresta das esperanças franzinas. Sim é o medo e a angústia; a raiva e a estupidez, a estamparia dos gestos inóspitos; a última palavra... a última palavra, sempre a última.

O que posso esperar de alguém que inventa defeitos para mim? Que merda de ameaça é esta que não me tira a vida, não decepa um pedaço do meu corpo, não me arranca a lucidez, e só faz me encher o saco, como a tolice mais torpe e miúda? Espécie de demência? Um jeito de desorientar para reverter a sinceridade dolorosa e voltar a se “igualar” no jogo? Existe jogo?

No tabuleiro da baiana tem... Associar para se ver mais. Estou começando a achar chique a idéia de ser bonito, inteligente e só.

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quinta-feira, maio 17, 2007

Dois pombinhos

Ela está soletrando algo, tão concentrada, que parece uma reza. Seu olhar é vívido, como se a pedir com ardente entrega. Mas vez em quando o olhar cai, fé manchada pela desconfiança. Seus óculos são antigos, de armação escura e feia, merecem ser trocados. Os olhos claros apostam na loucura, no remédio que chega no final. Tristeza é o que a vista alcança; é onde ver chega mais cedo.

Então, uma lágrima escorre com bastante vagar pela sua bochecha rosinha. Agora o seu soletrado mais parece um resmungo ou uma praga rogada. Sua fisionomia vai ganhando contornos de maldade. Peste! – tenho a impressão de ter ouvido a palavra. Lábios- flechas, veneno de irmã, para a cabeça de quem não a conhece.

O que habita esta menina? Ela morde a banana com tanta raiva! Ela sorri com simpatia quando fala de cinema. Os filmes que ela vê a deixam sem óculos e não têm gosto de alopatia insincera. Mas o que mora dentro dela? Ela se engasga e começa a soluçar e a se abanar e a se coçar. Arregala o olho, menina, e cospe na tela. O cinema nunca viu nada igual.

Aí chega um garoto. Alegre, cheio de traquejo. O rosto de insônia, uma cicatriz de medo no rosto. Ele tem uma vírgula tatuada na coxa. Uma enorme vírgula dando pausa para a próxima sentença de suas pernas. A menina leva os dedos da mão à boca. É uma criança que percebe o mundo matematicamente. Que está vendo o garoto sadio, forte, com a boca. Agora o mundo inteiro se espreme para caber em sua boca.

O garoto faz uma cara de altivez tesa, músculo içado, rosto graúdo, corte na teta da face. Ele também adora os filmes que ela vê, mas não suporta o desconcerto que ela lança no espaço. Nem o jeito como ela come bananas. O garoto é um pedaço de coisa admirável, um levante astral. Ele tem as unhas bem feitas e um desejo forte de riscar as costas dela. Ele ameaça, gavião. Ela tira os óculos e sente a presa que poderia ter sido. Ela ingere o remédio e se deita no chão. E grita: pisa! Esmaga meu peito!

O garoto pisa enquanto ri. Ela é pisada enquanto chora. Depois trocam. Ela ri e esmaga o garoto. Na sua sacola, há mais uma banana. O garoto soletra a fome e ela sente que não tem mais o que comer.

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domingo, maio 13, 2007

O sublime andar esquisito


Allyson anda como um boneco João Teimoso. A cada passo, parece que vai cair para algum lado. Porém, retorna sempre ao seu centro imaginário, ao seu eixo cego. Ele vem com um copo de água na mão, balança pra lá e pra cá, e nos oferece a tensão de admirar as coisas que estão para se desfazer a qualquer momento. Quem assiste espera pelo barulho do vidro se espatifando no chão, que irá se molhar e aguardar um pano sujo para secá-lo. Mas isso não acontece, pois Allyson é um grande trapaceiro. Com seu andar esquisito, equilibra-se e desequilibra os que o vêem passar. E engana com tanta superioridade que chega a plantar o desejo de tê-lo sempre andando.

Ele senta e põe o copo a seu lado, em cima da mesa. É um momento cruel, em que toda a delícia é paralisada, em que todo o assombro se apaga. Resta a torcida por algum acontecimento corriqueiro, que o tire da cadeira. Um chamado sem importância, um documento a seus cuidados, uma instrução rápida a ser transmitida, um fax. Mas Allyson é novato, ainda não está envolvido com muitas atividades, não é solicitado o bastante para levantar daquela cadeira várias vezes ao dia.

De onde estou consigo apenas ver a sua cabeça. Às vezes, quando ele anda, é a única parte do corpo que não balança. Nessas horas, o movimento fica mais desconcertante, pois dá a impressão de que são duas pessoas fundidas. Cria-se mais uma expectativa: a de que uma parte vai se descolar da outra e Allyson se transformará em um corpo sem cabeça e em uma cabeça sem corpo.

O tempo percorre a tarde e Allyson continua sentado. Entre uma conversa e outra, lança um sorriso simpático. Tenho a idéia de ligar para o ramal da assessora, que está viajando a serviço. A mesa dela fica próxima a dele. Consulto a minha lista de ramais, faço o chamado. Todos estão concentrados em suas tarefas. Depois do terceiro toque, ele se levanta e vai atender o telefone.

- Por favor, eu gostaria de falar com a Sra. Laura Fruegel.
- A Laura está fora, só volta na semana que vem. Em que posso ajudá-lo?
- Ela ficou de me passar as informações sobre o andamento da implantação da fábrica de Penedo. Disse que se não estivesse, deixaria um documento com o Júlio.
- Só um momento, por favor.

Allyson vai até a estação de trabalho de Júlio. É uma boa distância. Ele vai daquele jeito, corpo oscilante, cabeça fixa. Percebo mais um detalhe: as mãos aparentam estar mais moles que o restante do corpo e os dedos se movem ágeis. Sinto como se elas fossem despencar e se mover pelo solo como os tentáculos de um bicho.

- Senhor... Desculpe, qual o seu nome?
- Arnaldo.
- Sr. Arnaldo, o Júlio falou que não há nada que a Laura tenha deixado com ele.
- Então, por favor, veja com o Pedro.

Allyson mais uma vez anda pela extensa área da repartição. Corpo-pêndulo, falsamente ameaçador. Digna e silenciosamente magnético.

- Senhor, o Pedro também não tem ciência do documento.
- É muito importante. Por favor, faça mais uma tentativa. Fale com o Alcântara.

Neste momento ele vem até mim. É a primeira vez que o vejo de frente. Posso observar que seus olhos são como duas bolas gelatinosas, que seu rosto é incerto e derretido. Posso ver fundo em seus olhos que algo vai se desintegrar, que o próximo passo é uma mentira, que aquele braço esticado na minha direção irá soltar algum pedaço de pele. O seu traçado é torto; a sua cadência é ereta.

Entrego qualquer documento a ele. Allyson volta, com o papel na mão, para checar se é isso o que o Sr. Arnaldo precisa. Desligo o telefone e ele retorna para me devolver o papel.

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A diferença entre Zé e o seu amor

Quando o Amor de Zé viaja, ele fica encarregado de cuidar das plantas. Uma vez Seu Amor, ao chegar, percebeu que uma delas estava seca e morta. Passou um carão em Zé – Porra, você não viu isso não? O desatento camarada se sentiu uma besta, incapaz de cuidar de plantas.

Seu Amor caiu numa dessas pegadinhas da rede mais manjadas que existe e instalou um cavalo de tróia no computador. Zé ensinou à moça como proceder. Fazer back up, tentar remover o invasor; caso não conseguisse, formatar a máquina e instalar tudo de novo. E ainda falou um pouco sobre os malefícios que o danado poderia causar.

Ah, o autor já ia se esquecendo. Quando o Amor de Zé voltou de viagem, disse que estava morrendo de saudade dele.

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terça-feira, maio 08, 2007

A vastíssima solidão

Baudelaire gostava do termo “vasto”, tão curto e tão expressivo de imensidão. Acho até que o superlativo, neste caso, mata a palavra, que já é tão cheia de si. Basta dizer “vasto” e pronto, um mundo se abre.

O mesmo acontece com solidão, palavra tão independente que parece dispensar qualquer complemento. É simplesmente dispensável associar “vasto” à solidão, pois também basta dizer solidão e pronto, já se entende tudo. Sim, porque não existe solidão pequena; solidão é sempre enorme.

E quando digo “vastíssima solidão” só faço reforçar uma inútil associação de palavras. Só esvazio, transformo solidão em nada e vasto em mais nada ainda. A vastíssima solidão é isto: um pequeno vazio sem o menor sentido.

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sexta-feira, maio 04, 2007

O puríssimo amor

Eu sei que ela some, mas isso logo passa. Eu sei que ela não some, que invento para me ver presente em seus caminhos desconhecidos. Ela mente sem enganar, canta a vida até foder o maxilar; distrai-se para elevar seu canto e suplantar a dor. Diz que pensa em mim, e pensa mesmo. Poderia ser brincadeira, poderia ser maldade, mas é puro amor.

Hoje vi sobre a mesa de trabalho uma série de fotos estranhas. Eram retratos de uma mulher velha e gorda, mas com um sorriso bonito. Parecia ter vivido muito e suportado tudo aquela mulher. Mas era alcoólatra, diziam os que a conheceram. Perguntei de quem eram as fotos. Não era de ninguém. A velha gorda de sorriso encantador também sumia e não sumia pelas incógnitas que propunha.

E essa era a similitude que as unia. Cheguei até mesmo a ver a morena esguia, com colar exuberante, deslumbramento no olhar, convidar a velha gorda para sambar um coco. E a velha aceitou, risonha como sempre, pronta para o que desse e viesse. Neste momento a morena disse que pensou em mim. E pensou mesmo. Poderia ser brincadeira, maldade, mas não... Era o seu puríssimo amor.

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terça-feira, maio 01, 2007

Santíssima trindade


Porque se chama invasão

Há um homem e um passo
jogando com a mente
apanhando
de colméia formigueiro
de razão hierarquia
da melhor imagem homérica.
Bem, talvez
esteja mais próximo
dentro da mesma retórica
mais próximo
da mulher que ama
não sabendo até onde falar
não saindo da casa bonita.
Na prosa tem que inventar
uma gripe de beijos
um talento anterior
com voz própria
pegando poema
soltando versos
e desfazendo à parte
essas forças revolucionárias.


Algum direito à esperança

Há uma composição dedicada a ela
alguma coisa que se vê como certo tipo de alguma coisa
um estímulo adequado para encontrar uma lembrança.
Além disso, algo muito enérgico, muito novo e muito eficaz:
a arte de estar apaixonado (verbalmente também).
Sim, recordações, orientes, ocidentes e aproximações.
Com tudo o que aconteceu nos últimos anos
expressado várias vezes
há uma composição dedicada a ela
e ela é a prova de que a viuvez foi morar longe.



Idêntico a si mesmo

Sugestões implícitas
determinadas interpretações
preconceitos criativos
impulsos psicológicos distintos
ceticismo intolerável
diferenças concretas
recepção tal como entendido
inquietude nervosa da convicção
sacrifício próprio
a coisa toda bem mais intimidadora e desanimadora
o mundo mais ou menos óbvio
contraste fora de nós
atividade desconhecida na fase oral
latência teimosa
conveniência de significados
dificuldade de visão
em um só golpe.

Preferível deduzir perpétua ilusão
a abrir mão dos laços iniciais.

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O resumo da ópera

Ser ignorante pra saber que o mau é bom
Ser titubeante pra saber que nada é certo
Ser cor pra saber que o negro não fere

Tristeza é nuvem de se ver.

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