Dois pombinhos
Ela está soletrando algo, tão concentrada, que parece uma reza. Seu olhar é vívido, como se a pedir com ardente entrega. Mas vez em quando o olhar cai, fé manchada pela desconfiança. Seus óculos são antigos, de armação escura e feia, merecem ser trocados. Os olhos claros apostam na loucura, no remédio que chega no final. Tristeza é o que a vista alcança; é onde ver chega mais cedo. Então, uma lágrima escorre com bastante vagar pela sua bochecha rosinha. Agora o seu soletrado mais parece um resmungo ou uma praga rogada. Sua fisionomia vai ganhando contornos de maldade. Peste! – tenho a impressão de ter ouvido a palavra. Lábios- flechas, veneno de irmã, para a cabeça de quem não a conhece. O que habita esta menina? Ela morde a banana com tanta raiva! Ela sorri com simpatia quando fala de cinema. Os filmes que ela vê a deixam sem óculos e não têm gosto de alopatia insincera. Mas o que mora dentro dela? Ela se engasga e começa a soluçar e a se abanar e a se coçar. Arregala o olho, menina, e cospe na tela. O cinema nunca viu nada igual. Aí chega um garoto. Alegre, cheio de traquejo. O rosto de insônia, uma cicatriz de medo no rosto. Ele tem uma vírgula tatuada na coxa. Uma enorme vírgula dando pausa para a próxima sentença de suas pernas. A menina leva os dedos da mão à boca. É uma criança que percebe o mundo matematicamente. Que está vendo o garoto sadio, forte, com a boca. Agora o mundo inteiro se espreme para caber em sua boca. O garoto faz uma cara de altivez tesa, músculo içado, rosto graúdo, corte na teta da face. Ele também adora os filmes que ela vê, mas não suporta o desconcerto que ela lança no espaço. Nem o jeito como ela come bananas. O garoto é um pedaço de coisa admirável, um levante astral. Ele tem as unhas bem feitas e um desejo forte de riscar as costas dela. Ele ameaça, gavião. Ela tira os óculos e sente a presa que poderia ter sido. Ela ingere o remédio e se deita no chão. E grita: pisa! Esmaga meu peito!
O garoto pisa enquanto ri. Ela é pisada enquanto chora. Depois trocam. Ela ri e esmaga o garoto. Na sua sacola, há mais uma banana. O garoto soletra a fome e ela sente que não tem mais o que comer.
Marcadores: Enigmas, Histórias e invenções, Poemas
12 Comentários:
0-o
É... acho que preciso ler novamente.
De qualquer forma... beijo
Acho que isso vai contribuir para meu colapso nervoso!
;***
Acho que o entendimento supera a razão.
Guto, fiquei entre o gosto de sentir o mundo pela boca e a aprensão de ver um peito doído.
De qualquer forma, imagino que há mais entrelinhas do que eu consigo ler.
Guto, fiquei entre o gosto de sentir o mundo pela boca e a apreesão de ver um peito doído.
De qualquer forma, imagino que há mais entrelinhas do que eu consigo ler.
"apreensão" -> consertando
prazer e dor?
ai, acho que preciso ler de novo tbm, que nem a Cau.
Beijo
Esta é uma viagem. E se eu embarcar nela vou escorregar para a tênue linha que divide a ficção do delírio. Mas as metáforas revelam algumas coisas...
Brilho eterno de uma mente sem lembranças?? Ah, mas gostei ... bem escrito! Te espero mais vezes no meu canto, tá?
Obrigada pela visita, bjos!Bjos!
Moçooooooooooo,
mão à obra, por favor: http://www.concursosliterarios.com.br/home.php
mãoS à obra (ou uma só mesmo, quem escreve com as duas afinal? :O )
Ambidestros. Eu sei. Mas eu quis dizer "Quem escreve com as duas mãos AO MESMO TEMPO?"
Cof-cof-cof... acho melhor eu ir embora.
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