quinta-feira, maio 17, 2007

Dois pombinhos

Ela está soletrando algo, tão concentrada, que parece uma reza. Seu olhar é vívido, como se a pedir com ardente entrega. Mas vez em quando o olhar cai, fé manchada pela desconfiança. Seus óculos são antigos, de armação escura e feia, merecem ser trocados. Os olhos claros apostam na loucura, no remédio que chega no final. Tristeza é o que a vista alcança; é onde ver chega mais cedo.

Então, uma lágrima escorre com bastante vagar pela sua bochecha rosinha. Agora o seu soletrado mais parece um resmungo ou uma praga rogada. Sua fisionomia vai ganhando contornos de maldade. Peste! – tenho a impressão de ter ouvido a palavra. Lábios- flechas, veneno de irmã, para a cabeça de quem não a conhece.

O que habita esta menina? Ela morde a banana com tanta raiva! Ela sorri com simpatia quando fala de cinema. Os filmes que ela vê a deixam sem óculos e não têm gosto de alopatia insincera. Mas o que mora dentro dela? Ela se engasga e começa a soluçar e a se abanar e a se coçar. Arregala o olho, menina, e cospe na tela. O cinema nunca viu nada igual.

Aí chega um garoto. Alegre, cheio de traquejo. O rosto de insônia, uma cicatriz de medo no rosto. Ele tem uma vírgula tatuada na coxa. Uma enorme vírgula dando pausa para a próxima sentença de suas pernas. A menina leva os dedos da mão à boca. É uma criança que percebe o mundo matematicamente. Que está vendo o garoto sadio, forte, com a boca. Agora o mundo inteiro se espreme para caber em sua boca.

O garoto faz uma cara de altivez tesa, músculo içado, rosto graúdo, corte na teta da face. Ele também adora os filmes que ela vê, mas não suporta o desconcerto que ela lança no espaço. Nem o jeito como ela come bananas. O garoto é um pedaço de coisa admirável, um levante astral. Ele tem as unhas bem feitas e um desejo forte de riscar as costas dela. Ele ameaça, gavião. Ela tira os óculos e sente a presa que poderia ter sido. Ela ingere o remédio e se deita no chão. E grita: pisa! Esmaga meu peito!

O garoto pisa enquanto ri. Ela é pisada enquanto chora. Depois trocam. Ela ri e esmaga o garoto. Na sua sacola, há mais uma banana. O garoto soletra a fome e ela sente que não tem mais o que comer.

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12 Comentários:

Às 9:14 PM , Blogger Cau Alexandre disse...

0-o
É... acho que preciso ler novamente.
De qualquer forma... beijo

 
Às 5:34 AM , Anonymous Anônimo disse...

Acho que isso vai contribuir para meu colapso nervoso!

;***

 
Às 8:30 AM , Blogger Jane Malaquias disse...

Acho que o entendimento supera a razão.

 
Às 4:57 PM , Anonymous Anônimo disse...

Guto, fiquei entre o gosto de sentir o mundo pela boca e a aprensão de ver um peito doído.
De qualquer forma, imagino que há mais entrelinhas do que eu consigo ler.

 
Às 4:57 PM , Anonymous Anônimo disse...

Guto, fiquei entre o gosto de sentir o mundo pela boca e a apreesão de ver um peito doído.
De qualquer forma, imagino que há mais entrelinhas do que eu consigo ler.

 
Às 4:58 PM , Anonymous Anônimo disse...

"apreensão" -> consertando

 
Às 8:57 PM , Anonymous Anônimo disse...

prazer e dor?
ai, acho que preciso ler de novo tbm, que nem a Cau.

Beijo

 
Às 11:23 AM , Anonymous Anônimo disse...

Esta é uma viagem. E se eu embarcar nela vou escorregar para a tênue linha que divide a ficção do delírio. Mas as metáforas revelam algumas coisas...

 
Às 10:46 PM , Blogger Paula Estrela disse...

Brilho eterno de uma mente sem lembranças?? Ah, mas gostei ... bem escrito! Te espero mais vezes no meu canto, tá?
Obrigada pela visita, bjos!Bjos!

 
Às 6:23 AM , Blogger Raimundo Neto disse...

Moçooooooooooo,

mão à obra, por favor: http://www.concursosliterarios.com.br/home.php

 
Às 6:24 AM , Blogger Raimundo Neto disse...

mãoS à obra (ou uma só mesmo, quem escreve com as duas afinal? :O )

 
Às 6:27 AM , Blogger Raimundo Neto disse...

Ambidestros. Eu sei. Mas eu quis dizer "Quem escreve com as duas mãos AO MESMO TEMPO?"

Cof-cof-cof... acho melhor eu ir embora.

 

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