quinta-feira, abril 26, 2007

Pé de cana e canapé

Depois de quase duas décadas de ostracismo, o escritor Odilon Fonseca arrebatou o prêmio Tijanero de Literatura, um dos mais célebres da América Latina, com o seu livro de contos Missa en Scène. Ostracismo não é bem a palavra, já que Odilon nunca fora minimamente conhecido; tampouco consagrado. Afora uma história publicada aqui ou acolá em coletâneas e uns três ou quatro livros que não emplacaram, o autor tornou-se ilustre sem se amparar em um passado igualmente ilustre.

Para ele, o que fez a diferença desta vez foi o feliz trocadilho que dá título a um dos contos e à obra. Sempre insistiu no trocadilho. Via no exercício, o gracejo enfático; nas palavras que pulam, a solene ambigüidade. E era péssimo: seu conto No Ovo de Novo, por exemplo, foi crucificado. Falava de fortes dores de amor reincidentes. Já o livro de crônicas As Avarezas do Destino tinha título sofrível porque o trocadilho, por pior que fosse, não veio. Agora, Tijanero em punho, acreditava ter se transformado, por insistência, em um mestre nessa arte de pinçar chistes, de espiolhar facécias.

A festa estava bonita. Gente de peso, críticos, escritores, mulheres elegantes e muito uísque. Odilon, a cada dose, fazia pelo menos duas ou três vezes um movimento circular com o copo para rodar o gelinho, como se assim desse mais sabor à bebida. O exército de garçons passava a toda hora, com suas generosas bandejas, suas gravatas-borboleta e seus uniformes de pingüim. Os fumantes tragavam seus cigarros importados. O mais consumido era o La Pavlova, uma homenagem à bailarina estrangeira, mais conhecida entre os latinos como “La Reina de la Danza”. Ilustrando o maço, uma pintura da dançarina vestida a caráter. Era desse que Diogo Konig, editor de Odilon, fumava. Gostava de emitir conceitos em baforadas. De vez em quando tossia, mas tinha um jeito de transformar a tosse em um salto da fala, de modo que quase não se notava o pigarro; antes, muito antes, havia ali um ritmo da inteligência.

Mas não ficava atrás o Eldorado, também tragado por muitos na festa, com ilustração de um tipo bucólico de mulher, ao lado de sua ovelha Janira, com atitude ligeiramente desleixada. Havia ainda aqueles que traçavam o Flirt. Este mostrava a mulher do vento, erguendo sua sombrinha, sensual em seu vestido de tecido fino, olhando de soslaio. E desse jeito os tabacudos - modo como são conhecidos os fumantes em Valentina, cidade sede da entrega do Tijanero – iam se divertindo a valer, entre largos goles e fumaça estrangeira.

Um capítulo à parte foi o instante da premiação. Vários escritores concorriam. Um deles se empanturrou tanto que, na hora do mestre de cerimônias apresentar os concorrentes, vomitava no banheiro as trufas e canapés ingeridos com tanto gosto e vontade. Konig, Pavlova entre os dedos, percebera que aquilo podia ser um desastre e tratou logo de colocar panos quentes. Cochichou no ouvido de alguém da produção que o escritor estava em uma importante ligação e já já estaria de volta.

Cicero Santoro, outrora badalado, mais por conta de seus casos com mulheres famosas que por sua literatura, era o favorito da noite. Ao ser chamado, dirigiu-se à escada que dava acesso ao tablado onde cada qual faria um breve discurso e, em um movimento um pouco além de seus limites, rasgou o fundo de suas apertadas calças. As únicas que possuía para se vestir em eventos de gabarito. O som do rasgão foi apagado pelos calorosos aplausos, apenas os ouvidos mais atentos captaram, os olhos mais maldosos avistaram e as bocas mais insaciáveis se alimentaram, depois de toda a comida, do falatório em segredo sobre a tentativa do pançudo Santoro de disfarçar seu acanhamento. Como está gordo, meu Deus! – comentava uma senhora com outra senhora enquanto mastigava as últimas tirinhas de gorgonzola.

E o Tijanero vai para: Odilon Fonseca, por Missa en Scène! O mestre de cerimônias anunciou com voz forçosamente animada. Odilon subiu no tablado, com a velocidade temerosa dos bêbados. Sem vacilar, pegou o microfone e agradeceu. “Nós somos muito pobres”, soltou o urro. Agarrou o troféu e, na escada, levou um tombo indescritível. Ele, que se diz um verme megalomaníaco, não perdeu por um segundo a compostura. Dispensou ajuda, levantou-se célere, o povo rindo. Só mesmo um verme megalomaníaco para cair tão feio e soar tão simpático.

No dia seguinte, todos os jornais noticiavam a premiação de Odilon Fonseca. Comentavam mais do tombo que do livro. Nunca um tombo alçara alguém a alturas tão elevadas. E desde então o fato estava consumado: Odilon era realmente o mestre dos trocadilhos.

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11 Comentários:

Às 1:34 PM , Blogger david santos disse...

Vim felicitar-te pelo teu trabalho e desejar um bom fim-de-semana

 
Às 3:12 PM , Blogger Guto Melo disse...

Obrigado David

 
Às 4:49 PM , Blogger Noeli da Fonseka disse...

Isso é maestria:
Nunca um tombo alçara alguém a alturas tão elevadas.

Boa Semana!

 
Às 3:23 AM , Blogger Ro Druhens disse...

Cheguei aqui através da B.V, aquela que caminha em silêncio. BÁRBARO o seu texto!!! E bom saber que vc, assim como eu, vive aqui no cerrado. Abraços

 
Às 8:58 AM , Blogger Guto Melo disse...

Ro,

é um prazer imenso ter você, escritora suicida, aqui pelo blog. Antes de você chegar em mim, eu tentei chegar em você. Li um texto seu chamado Hotel Rodoviária, que achei muito bom. Então mandei um e-mail pra ti, com um comentário inspiradíssimo - rs (porque me moveu bastante coisa), mas voltou. Tentei três vezes, voltaram todas. O endereço era druhens@terra.com.br. Como meu servidor na época estava com problemas com outros domínios, talvez tenha rolado um lance técnico que impediu a comunicação. Vou tentar mandar esse comment que estou deixando no blog para o teu e-mail. Bom saber também que você está perto.

Sorte na vida, querida! E continue brilhando em palavras.

 
Às 11:00 AM , Anonymous Anônimo disse...

olha eu ja ouvi falar neste cara mas nao me lembro onde, mas gostei da parte biografica que vc pos aqui, mt interessante e engraçada, abraçossss

http://noelevador.zip.net
http://vidacretina.zip.net

 
Às 1:25 PM , Anonymous Anônimo disse...

Oi, Guto,to feliz!!! Realmente eu dessassinei o Terra, daí que o imeio não existe mais. Agora "atendo" nos endereços: rorodruhens@hotmail.com e/o ro.druhens@gmail.com. Beijo (e vou copiar parte do seu com. lá no blog novo, tá?)

 
Às 2:47 PM , Blogger Guto Melo disse...

Ok Ro, vamos nos falando.

Ah, Ricardo. O Odilon é inveção deste moço que escreve. Então, se você já ouviu falar nele é sinal de que o teu ouvido habita o meu espírito.

Gd abraço.

 
Às 1:40 PM , Blogger Késia Maximiano disse...

Belo blog...

 
Às 2:02 PM , Anonymous Anônimo disse...

Tks pela linkada!!! E qto ao excesso de "imeios no domingo", não recebi nenhum...rsrs...kiss

 
Às 4:49 PM , Anonymous Anônimo disse...

Dentro de mim vive um Odilon.
Mas, que tem medo de tombos.
Muito.
Em todos os sentidos~.
E direções.

 

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