domingo, abril 15, 2007

Tiro na bola

São oito da noite. O Rio é uma série de películas que não têm nada a ver com o cinema. Elas estão nos vidros dos carros estampando uma viuvez que corre a 80, 100 por hora. Apesar do insufilme esconder quem está dentro do automóvel, aquilo tudo me pareceu um escândalo assumido, uma manifestação de luto assíduo. Do aeroporto do Galeão ao bairro onde cresci.

Bairro onde também viveu Clementina de Jesus a partir de 1980, quando trocou a casa de porta verde e paredes rosas do Engenho Novo por outra, bem modesta, em Inhaúma. A moradia foi conseguida por intermédio da Funarte e registrada no nome da Casa dos Artistas. Foi assim que Clementina se livrou do aluguel. Na época, embora a Mãe Quelé já fosse reverenciada como um mito da música brasileira, ainda fazia shows por cachês irrisórios em bares cariocas para completar a renda magra decorrente da pensão do marido e da aposentadoria como doméstica.

Com a casa de Clementina eu tenho uma história engraçada. Em frente a ela, havia uma pracinha com uma pequena quadra esportiva onde vez por outra batia uma pelada com os moleques da minha idade. Numa dessas partidas, a bola caiu na casa de Quelé. A nossa rainha já tinha morrido e o local não estava habitado. Ninguém queria pular o muro para pegar a pelota. A garotada tinha medo dos supostos malassombros da "toca da macumbeira". Eu fui lá e peguei a bola. O jogo seguiu e fiz três gols. Todos diziam que eu havia voltado com o capeta no corpo.

Pois é, este bairro agora está sitiado. A maioria das ruas está com cancelas na entrada. Viraram "condomínios". Cada um que puder (não é obrigatório) paga trinta contos para ter uma segurança "maior". Os roubos cessaram, as crianças voltaram a brincar na rua. Há quem diga que esse dinheiro todo vai para a bandidagem. Ninguém sabe, mas é certo. Em suma, todos continuam sendo roubados, só que agora em troca de tranqüilidade.

Inhaúma também foi o lugar onde nasceu Zé Keti. Por aqui circulavam Pixinguinha e sua turma; Vinicius dava as suas ciscadas. É difícil acreditar em todo esse cenário atual, de confinamento que tanto castiga o suburbano exuberante. Em Inhaúma, eu ejaculei pela primeira vez. É um susto imenso engolir essa tez. Aqui também tem um cemitério. Estou viúvo do tempo. Minha mãe, meu irmão e alguns amigos ainda moram aqui. Eu saí há dez anos. Os tiros estalam, os tiros pipocam. Os tiros furaram a bola que eu peguei lá na casa de Clementina.

Marcadores:

9 Comentários:

Às 3:08 PM , Blogger Jane Malaquias disse...

Inhaúma, terra de Guteleleu amor meu.Pula de novo o muro da Clementina e pede proteção.

 
Às 4:24 PM , Anonymous Anônimo disse...

gostei mt do final, bem triste, bem poetico, gosto de coisas assim, gosto mt da nostalgia, onde eu cresci ta a mesma coisa, coisas de interior, aqui na capital eu moro no centro, a violencia eu fico longe, vejo só nas paginas do jornal, sorte de quem pode pagar pra ter segurança, melhor que ter uma bala na cabeça, abraço....

 
Às 8:17 AM , Anonymous Anônimo disse...

Cara, eu também sou do Rio. Seu texto é uma constatação.
Leio e releio com um profunda tristeza. Onde foi que nos perdemos?
Abração.

 
Às 9:52 PM , Anonymous Anônimo disse...

Ei, Guto... tá no Rio! Manda um e-mail pra mim. Verei como podemos tomar alguma coisa na Farme. E chamo o outro Guto tb! anote, amigo: luciambc@superig.com.br
Beijos

 
Às 4:47 AM , Blogger Jana disse...

E assim a gente perde a infância...

Beijos

 
Às 6:51 AM , Blogger Juliana Marchioretto disse...

eu não conheço o Rio, mas gostaria de visitar a Lapa, o samba, mas não sei se ainda existe daquele jeito, como o Cartola dizia...


bjo

 
Às 9:23 AM , Blogger Raimundo Neto disse...

É só levar suas borboletas sempre que elas precisarem.
A flor está por lá. Aberta!

 
Às 10:50 AM , Blogger .Fer. disse...

Se for pra ser roubado, que seja em nome de uma relativa tranqüilidade, eu acho...

Beijo grande

 
Às 12:06 PM , Blogger Flavio Vaz disse...

Guto, muito rico o seu texto. Nasci, moro e vivo no Rio, sei bem a essência de seu texto, e também sei perfeitamente que quando éramos crianças o Rio era uma cidade mais pura, menos mesquinha e estranha. Sinto saudades daquela época. E como disse Paulinho da Viola, "a voz de Clementina é um choque". Abraços.

 

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial