Dois Mergulhos
Murilo cortava o pedaço de carne sobre o prato. Quisera estar talhando as faces de Saturno, Senhor do Tempo enevoado e menos denso que a água. Sua saliva a diluir o bolo de seus medos, o amido de seus carmas, a lubrificar bloqueios e a deixar não menos úmida a maturidade de seus afetos brilhantes. Cada segundo trazia a lembrança de que a persistência pode ser um vento forte demais e arrastar seu corpo. Já se via mesmo, braços e pernas dissipados, flutuando em um oceano de grãos quadrados, a visão da bela morte entortando geometrias.
Em algumas horas Murilo deverá chegar em Ribeira do Pombal. Embrenhar-se no sertão baiano foi a maneira menos dolorosa que ele encontrou de fugir. Sabia que sua vida se tornaria um inferno. Sabia que aqueles homens iriam persegui-lo até o fim se preciso e, quando o pegassem, fariam o que quisessem e bem entendessem. Embora ele não tivesse feito nada, estava condenado. E não existe miséria mais exaustiva do que perseguição sem motivo.
O motorista apressa os passageiros. Dona Ademar ri das mugangas de um menino malabarista de mexericas e pode se perceber um caroço de feijão grudado nos dentes dela. Todos sobem e se ajeitam em suas poltronas. Dona Ademar está na janela; Murilo ao lado da velha, no corredor.
- Seu dente está sujo – avisa Murilo
A velha puxa um pequeno espelho da bolsa e vê o caroço de feijão, mais assanhado do que ela em tempos de juventude.
- Este motorista é muito nervoso. Nem espera o povo comer direito, escovar os dentes, fazer um asseio – queixava-se enquanto cutucava o caroço com a unha.
Murilo olhava para aquelas bochechas caídas. Pareciam esconder a glória com a fisionomia do cansaço. A insensível ação do tempo tanto nos perturba que nos desfigura. Não tirava os olhos das bochechas da velha.
- Aceita? - Murilo oferece uma bala.
- Eu quero, meu filho. Não é pra mim, mas pro meu netinho. Vou dar a ele quando chegar.
Em algumas horas Murilo deverá chegar em Ribeira do Pombal. Embrenhar-se no sertão baiano foi a maneira menos dolorosa que ele encontrou de fugir. Sabia que sua vida se tornaria um inferno. Sabia que aqueles homens iriam persegui-lo até o fim se preciso e, quando o pegassem, fariam o que quisessem e bem entendessem. Embora ele não tivesse feito nada, estava condenado. E não existe miséria mais exaustiva do que perseguição sem motivo.
O motorista apressa os passageiros. Dona Ademar ri das mugangas de um menino malabarista de mexericas e pode se perceber um caroço de feijão grudado nos dentes dela. Todos sobem e se ajeitam em suas poltronas. Dona Ademar está na janela; Murilo ao lado da velha, no corredor.
- Seu dente está sujo – avisa Murilo
A velha puxa um pequeno espelho da bolsa e vê o caroço de feijão, mais assanhado do que ela em tempos de juventude.
- Este motorista é muito nervoso. Nem espera o povo comer direito, escovar os dentes, fazer um asseio – queixava-se enquanto cutucava o caroço com a unha.
Murilo olhava para aquelas bochechas caídas. Pareciam esconder a glória com a fisionomia do cansaço. A insensível ação do tempo tanto nos perturba que nos desfigura. Não tirava os olhos das bochechas da velha.
- Aceita? - Murilo oferece uma bala.
- Eu quero, meu filho. Não é pra mim, mas pro meu netinho. Vou dar a ele quando chegar.
Os sacolejos e as manobras improvisadas denunciavam que a estrada não estava nada boa. De lá do fundo, um moço alto e magro tocava seu cavaquinho de modo inspirado e tímido, até que por conta de uma freada brusca ele foi ao chão com o seu instrumento. Teve de amargar o prejuízo do cavalete descolado e do rastilho rachado. O moço encarava seu cavaquinho empenado com o semblante afligido pela incerteza do conserto.
A monotonia da viagem era garantida pela paisagem árida. Murilo mergulhava em suas febres, ainda que a contragosto. A sua vida passava pela janela que dava para o solo seco. As velas gigantes que existiam no quarto daqueles homens eram o horror; não caberiam em qualquer castiçal. Seus perseguidores a trariam, tinha absoluta certeza. E passariam com tudo sobre o seu corpo, como um magnífico compressor. Só de imaginar, contraía-se inteiro e batia os dentes de cima com os de baixo, pausadamente, em um ritmo que dava nova duração aos segundos.
Percebeu uma menina lendo Subterrâneos da Liberdade. Não identificou com precisão o volume, mas era um exemplar de uma edição que ele um dia possuíra e que fora furtado não se sabe como. Com a mesma certeza das velas, acreditava que a menina era a ladra de seu livro. Era seu, de mais ninguém podia ser! Pensou em avançar em cima dela e tomar o livro de volta, mas uma centelha de razão o conteve. Contorcia-se e contorcia-se na poltrona. E os dentes batendo.
Dona Ademar roncava. Vivia o sono das pedras. Será que esta velha sonha? – Murilo perguntava mudo e inquieto. Em sua mente, novas hélices iniciavam movimentos autopermeáveis. Sentia uma vontade imensa de ir ao banheiro, dar aquela mijada longa, mas não podia. Lá dentro o carrasco está pronto para molestá-lo. E se não for com a vela, será com um tubo de cola garganta abaixo. Para que nunca mais possa falar ou para que sempre tenha que falar tudo de uma vez.
E essa cidade que não chega! A inquietude que aumenta, o ronco da velha cada vez mais irritante, o livro da menina que coça a sua alma. Infeliz, infeliz! xingava a si mesmo. Infeliz, infeliz! xingava também a menina. Dona Ademar acorda de sobressalto. Murilo em silêncio agradece a companhia daquela casa de rugas, onde ele quer morar para se proteger dos homens que o perseguem.
Chegamos! – o motorista dá o sinal. As pessoas saem uma a uma para pegar a sua bagagem. Murilo trazia a sua toda na mão. Ao desembarcar, correu para o meio da praça, onde avistara um poço. Lá deve haver água, preciso de água, sua hélice ventava no caminho. Pulou com toda a gana, com toda a sede e se espatifou no concreto do jeito mais extravagante que pôde. Ralou a testa e o ombro, de tão esquisita que foi a queda.
A cena soprou susto em Dona Ademar. Sem estardalhaço, jogou fora a bala que Murilo havia dado para ela. O rapaz foi levado ao hospital e socorrido sem muita demora.
- Como é que você arrumou isso rapaz? Ralar a cara na praça, onde já se viu? – a enfermeira ralhava como quem fala com uma criança.
Concentrado em sua dor física, Murilo aos poucos volta a se habituar à própria calma.
- Quanto tempo estes cortes levarão para cicatrizar?
- Se fizer os curativos direito, em duas semanas você deve estar bom.
Lá fora, beatas baianas de Ribeira do Pombal faziam, a compasso, a procissão de São Benedito, misturadas a pagadores de promessas e curiosos. Enquanto vai sendo remendado pela enfermeira, Murilo ouve o canto sussurrado das devotas. Elas carregam velas, temores, fé e graça.
Percebeu uma menina lendo Subterrâneos da Liberdade. Não identificou com precisão o volume, mas era um exemplar de uma edição que ele um dia possuíra e que fora furtado não se sabe como. Com a mesma certeza das velas, acreditava que a menina era a ladra de seu livro. Era seu, de mais ninguém podia ser! Pensou em avançar em cima dela e tomar o livro de volta, mas uma centelha de razão o conteve. Contorcia-se e contorcia-se na poltrona. E os dentes batendo.
Dona Ademar roncava. Vivia o sono das pedras. Será que esta velha sonha? – Murilo perguntava mudo e inquieto. Em sua mente, novas hélices iniciavam movimentos autopermeáveis. Sentia uma vontade imensa de ir ao banheiro, dar aquela mijada longa, mas não podia. Lá dentro o carrasco está pronto para molestá-lo. E se não for com a vela, será com um tubo de cola garganta abaixo. Para que nunca mais possa falar ou para que sempre tenha que falar tudo de uma vez.
E essa cidade que não chega! A inquietude que aumenta, o ronco da velha cada vez mais irritante, o livro da menina que coça a sua alma. Infeliz, infeliz! xingava a si mesmo. Infeliz, infeliz! xingava também a menina. Dona Ademar acorda de sobressalto. Murilo em silêncio agradece a companhia daquela casa de rugas, onde ele quer morar para se proteger dos homens que o perseguem.
Chegamos! – o motorista dá o sinal. As pessoas saem uma a uma para pegar a sua bagagem. Murilo trazia a sua toda na mão. Ao desembarcar, correu para o meio da praça, onde avistara um poço. Lá deve haver água, preciso de água, sua hélice ventava no caminho. Pulou com toda a gana, com toda a sede e se espatifou no concreto do jeito mais extravagante que pôde. Ralou a testa e o ombro, de tão esquisita que foi a queda.
A cena soprou susto em Dona Ademar. Sem estardalhaço, jogou fora a bala que Murilo havia dado para ela. O rapaz foi levado ao hospital e socorrido sem muita demora.
- Como é que você arrumou isso rapaz? Ralar a cara na praça, onde já se viu? – a enfermeira ralhava como quem fala com uma criança.
Concentrado em sua dor física, Murilo aos poucos volta a se habituar à própria calma.
- Quanto tempo estes cortes levarão para cicatrizar?
- Se fizer os curativos direito, em duas semanas você deve estar bom.
Lá fora, beatas baianas de Ribeira do Pombal faziam, a compasso, a procissão de São Benedito, misturadas a pagadores de promessas e curiosos. Enquanto vai sendo remendado pela enfermeira, Murilo ouve o canto sussurrado das devotas. Elas carregam velas, temores, fé e graça.
6 Comentários:
Moço, moço, moço... to aqui nervoso com o conto.
Eu vou me repetir, seu sei: excelente.
"o semblante afligido pela incerteza do conserto": Boa idéia... rsrs!
E publique!
Abraço!
Show de bola! Mas, Guto, pedi sua opinião sobre o meu conto e você não escreveu nada sobre ele. Não leu ou não gostou? Estou no aguardo de uma crítica sua. :)
Abração.
Mundo Novo, está publicado no merclux, ora! - rs. Flávio, ainda não passei lá. Faço isso já, já.
Gostei demais da casa de rugas e a vida passando na janela que dá para o solo seco. Aliás gostei de tudo. Você é um solo fértil onde o cotidiano planta sementes de sonho.
É tão raro eu gostar.
E eu gosto. Você escreve bonito.
Daquela boniteza que faz querer mais.
ai me causou um certo desconforto...
beijos
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