sábado, março 10, 2007

Infância Difícil? Isto aqui não é ornato não, rapaz!

Abaixo, segue um texto inspiradíssimo de Roberta Silva, escritora mineira. Foi a forma tardia que encontrei de não deixar passar em branco o Dia Internacional de Minhas Amadas.
E quem puder dar uma espiada no site Escritoras Suicidas, vale muito a pena. Lá, além de Roberta, outras autoras publicam suas ardências.
Boa leitura!
Alta Traição
Poderia ter dado de ombros. Ao invés, tremeu os joelhos. Dado uma seqüência rápida de socos em seu queixo. Dizer que é louco de amor e olhar no espelho para conferir a expressão? Mas não, só conseguiu um "tu-tu-tu-tu-tu-tu" para um simples "Tudo bem?". Patético foi que isso o fez conferir novamente a imagem. Desta vez, a de compreensivo-e-modesto. É pelo que consegue de você que o admiro. Perder o controle por alguém que fala de si como quem conta história de um santo e, pior, do qual alcançou um milagre?

Pense! Você assistiu Je Vous Salue Marie! e entendeu. Leu autores latinos, africanos, árabes. Concorda com Nietszche. Assina Caros Amigos e Carta Capital. É fã de Fidel Castro. Toca violoncelo e tem dois Frida Kallo. Falsos. Tudo bem, mas tem. Ter pena quando diz que é assim porque teve uma infância difícil? Infância difícil? Fora ele, milhões de brasileiros, bilhões mundo afora tiveram! Ele some por meses, liga de madrugada, bêbado, o deixa entrar, para que não enfie o carro num poste e dá para ele? Sem camisinha?

Em tempos de guerra cortariam sua língua, lhe ateariam fogo em praça pública. Alta traição. Todas as provas apontam-na, incontestavelmente. No júri, escolhidas pela promotoria, uma mulher que teve que sair de casa para trabalhar, uma senhora que queimou o sutiã em 70, outra seduzida, abandonada e renascida, uma socialista de carteirinha, uma lésbica, outra que bem podia ser a reencarnação de Lucrécia Borja. Mulheres que nos ajudaram a formar a consciência e conquistar tudo o que temos. O que somos.

Sua defesa, tímida, tenta, com argumentos esdrúxulos, impugná-las. Advogada-de-porta-de-cadeia (Não gastaria latim consigo mesma, não é?). Busca apoio no sangue das matronas beatas que corre em suas veias. Acostumadas ao comando de seus homens, a considerar o sofrimento virtude, a dar o melhor para ele e seus filhos e contentar-se com o mínimo e dizer-se feliz assim.

Conseguirá, no máximo, um olhar impaciente da juíza. Famosa pela severidade de suas penas, pela imparcialidade, pelo rigor. No peito uma pedra. Na parede, a chave da cidade e num baú bem trancado, rubras lingeries. Para todos, a juíza. Secretamente, a puta. O que espera de alguém assim? Compaixão?

Será um massacre. Em poucas horas o veredicto: — Culpada! Pena máxima!

Talvez se você tentasse uma fala última. Se dispensasse essa defesa medíocre, quem sabe? Levante-se e diga, em tom cambaleante que seja. Que por instantes, meses, quem sabe séculos, aceitou que era alguém sem estirpe, sem valor considerável. Que, por ter fornicado por séculos em troca de pão, sabedoria, reconhecimento, proteção, o diabo a quatro, sua natureza ficou irremediavelmente mestiça e vira-latas e que usaram esses argumentos, por tanto tempo e com tanta força contra você, que chegou mesmo a crer que eram válidos e que lhe faziam favor em beijá-la vez em quando. Quem sabe reconhecendo, diante do tribunal, que tem falhado consigo e com sua classe, pudesse, pelo menos, adiar a execução da sentença?

Proponha enclausurar-se em si. Comprometa-se a não se deixar usar mais por carência ou baixa auto-estima: "Só por hoje, não me deixarei usar. Não buscarei companhia só para disfarçar o medo de estar só comigo mesma. Lutarei até descobrir-me capaz de tomar as rédeas de minha vida. Passarei com bravura pela crise de abstinência até desintoxicar-me completamente e reconhecer-me inteira, acompanhada ou não".

Talvez assim, para seu governo, eu diminua minha pena.
Roberta Silva (Belo Horizonte-MG, 1971). Usa os pseudônimos Sweet Ragi (ponto de vista feminino) e Gulab Song (ponto de vista masculino). Vive em Belo Horizonte, tem poemas e contos publicados na Web, é inédita em livro.

14 Comentários:

Às 8:54 PM , Anonymous Anônimo disse...

Tô aplaudindo de pé esse texto da Roberta Silva. É um murro na cara da maioria das mulheres. Mas verdadeiro e cristalino. Que doa, doa muito, para que se dê uma freada na maldita carência que empurra para situações que são de pura auto-piedade. O bêbado de infância difícil é apenas um coadjuvante nesse enredo de baixa auto-estima que muitas mulheres escrevem para si.

 
Às 6:22 AM , Blogger Beatrice disse...

Um ciclo de desamor que precisa ser quebrado. E logo.

Adorei os codinomes da Roberta. Gulab me lembrou um doce indiano, gulab jamur, que é maravilhoso! Eu sempre vou até o Escritoras Suicidas, mas meu alvo, na maioria das vezes, é a Ro Druhens. Conhece?

 
Às 9:29 AM , Blogger Agnaldo Ribeiro disse...

Muito bacana o seu blog e obrigado pela visita!

abraço!

 
Às 9:35 AM , Blogger Agnaldo Ribeiro disse...

"...Nesta noite, ele sonha que a Sapucaí é um mar tempestuoso..."

muito bom!

 
Às 2:05 PM , Blogger Luma Rosa disse...

Do site conheço a Andreia Del Fuego, seus textos são ótimos também. Vou lá conhecer outros escritos da Roberta, esse ficou com gostinho de quero mais!! Beijus

 
Às 3:16 AM , Blogger Yvonne disse...

Oi Guto, obrigada pela sua visita lá no meu cantinho. Esse texto da Roberta é maravilhoso e deveria ser apreciado pelas mulheres. Os codinomes estão ótimos. Beijocas

 
Às 7:29 AM , Anonymous Anônimo disse...

Muito interessante o texto da Roberta. Estou indo agora visitar o site dela.
Parabéns pelo seu site por divulgar este escelente trabalho.

 
Às 8:07 PM , Blogger líria porto disse...

essa moça é das melhores! viva a escritora roberta silva!
líria porto

 
Às 3:34 AM , Anonymous Anônimo disse...

Salvo Escritores Suicidas em meus Favoritos.. adorei o texto..
Ciclos que precisam ser revistos.. tranformados em elipses talvez, prá sair do labirinto..

Maravilhoso.

Beijos

 
Às 10:24 AM , Blogger Flavio Vaz disse...

Texto bacana! O mundo seria muito monótono e sem graça se não existissem as mulheres, não consigo viver sem elas na minha vida. É bem verdade que a maioria das moçoilas é emocionalmente instável, tem suas idiossincrasias, por vezes chatas, mas isso tudo faz parte do universo singular feminino que teimamos em tentar entender, mas que nunca entenderemos. Como disse meu pai numa ocasião em que comentei com ele que não entendia a cabeça das mulheres, o coroa experiente, com três casamentos nas costas respondeu: "Flavio, esqueça essa idéia de querer entender as mulheres, você não vai conseguir achar a resposta pra essa pergunta". Viva elas!!! Abração.

 
Às 6:26 PM , Anonymous Anônimo disse...

E escreve deliciosamente "suas ardências".

 
Às 3:57 AM , Blogger Raimundo Neto disse...

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhh, leio as suicidas há tempos!

Gosto muuuuuuito da Andréa del Fuego!
Conhece o blog dela?

 
Às 6:21 AM , Blogger Chris disse...

mea culpa!

 
Às 8:39 PM , Anonymous Anônimo disse...

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