terça-feira, fevereiro 20, 2007

O Eterno Dugongo

Em 1982, era um moleque de sete anos. Queria torcer por uma escola de samba e a primeira que veio à cabeça foi a Boêmios de Inhaúma, por ser a do bairro. Mas a agremiação era nanica, jamais desfilara com as grandes. Mais precisamente, um bloco que só mais tarde veio a ser GRES. Afetos locais à parte, a Boêmios estava descartada. Entendia, apesar da pouca idade, que um torcedor deve fazer suar a alma em prol de monstruosas energias coletivas. Além do mais, é na corrente de almas suadas que cada torcedor, em êxtase e incontrolável, vê se deitar a glória da conquista.

Decidiu que a eleita seria aquela com o samba mais bonito. Enfeitou o coração de confete e serpentina, abraçou a Coroa Imperial e juntou-se aos Moleques de Debret. O samba de Beto Sem Braço e Aluísio Machado, antes de triunfar na avenida, desenhou uma apoteose no peito do menino, que fez Bum Bum, Paticumbum, Prugurundum com a típica força espevitada da infância. Comprou calça branca e blusa verde, boné da escola, aprendeu a cantar o samba todinho e até ensaiou alguns passos.

Naquele ano a Império Serrano sagrou-se campeã do carnaval carioca. O menino acertara. Ele era, já aos sete, um campeão que de uma barrica faz uma cuíca e de outra monta um surdo para marcação. Quem é Yemanjá? – indagava na época. A mãe cujos filhos são peixes – soprou algum espírito carnavalesco. Sem hesitação, disse que queria ser um dugongo formoso, exclusivo das águas marinhas, peixe-mulher a inspirar a lenda das sereias. Ainda por cima, traria a percussão no próprio nome. Perfeito para futuros carnavais!

No entanto, de lá pra cá, a Império não ganhou mais nenhum desfile. Chegou até a ser rebaixada, mas depois se reergueu. O menino foi crescendo e criando simpatia pela Mangueira. O moço passava em frente à primeira estação toda vez que ia para o trabalho ou para a universidade. Mangueira de Cartola, pensava. Mas virar a casaca é coisa vergonhosa, de gente traiçoeira, uma deslealdade imperdoável. Condenava-se só de se refrescar com a brisa do ato.

Mas que diabo! Que super crise existencial! Tanto “um” aos sete acabou plantando a semente de quase três décadas de secura. Sua alma de homem pigarreia. Quer mais do que nunca e o mais breve embriagar-se com um título. Ser içado a um céu percussivo pelas argolas de um novo embalo, pois o passado se gasta e, por mais que se fale em tradição, não dá mais para viver às custas de um sol desbotado pelo tempo.

Ele vê a Mangueira passar na TV. Ela está insuportavelmente linda, leve e contagiante. É demais para a sua tosse. Ele não consegue admitir que o seu amor está murcho. Que o verde permanece, mas o branco é coisa a ser trocado pelo rosa.

Intrigado, desliga a TV e vai para cama. Custa a dormir e o sono é agitado. Nesta noite, ele sonha que a Sapucaí é um mar tempestuoso e ele aparece, pesando quase uma tonelada, com um par de dentes incisivos protuberantes e com unhas gigantes em lugar das nadadeiras. Enquanto as escolas desfilam, ele mergulha de narinas fechadas na avenida-mar e se alimenta de pequenas plantas um pouco abaixo da superfície. O tossidor-torcedor é o próprio dugongo, com olhos pequenos e sem pálpebras, a ver a Império passar incólume e estonteante.

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9 Comentários:

Às 10:28 AM , Blogger Barbara disse...

Onde estão os carnavais sem vitórias, com máscaras e sexo derramado entre identidades secretas e o som alto disfarçando gemidos? Bailarinas, tristes palhaços, loucos de todos os gêneros poderiam gritar desvairadamente e fora do tom sem medo de perder pontos diante dos juízes.

 
Às 3:38 PM , Blogger Guto Melo disse...

Dugongo não sabe.

 
Às 4:50 AM , Anonymous Anônimo disse...

Sabe... Esta parece a minha história. Assim como você, eu ainda moleque, me apaixonei por uma agremiação. Aquela que mais vezes tinha ganho o carnaval. Portela, do berço do samba, de Madureira... Pois eis que na era do Sambódromo, a Portela apenas dividiu um título, em 1984. Depois disso... Apenas a frustação.
Carnavais melhores virão...
Um abraço e o meu mais profundo lamento pelo Império Serrano ter sido rebaixado mais uma vez.

 
Às 8:13 AM , Anonymous Anônimo disse...

que festinha de carnaval interessante.. mas ainda penso que pouco importa as escolas de samba perto da alegria do povo.

 
Às 9:39 AM , Blogger Vicente Magno disse...

Tu tá traindo a coroa imperial, rapá?

"Menino de 47
De ti
Ninguém se esquece

Serrinha, Congonha, Tamarineira
Nasceu o Império Serrano
o reizinho de Madureira"

A minha Mocidade tá na fita pra degola, ficou logo acima do valoroso Império. Aquele mesmo que "enverga mas não quebra".

 
Às 10:14 AM , Anonymous Anônimo disse...

Menino, que coisa mais sensível você escreveu... "belíssimo post"!

Vou torcer daqui para que os próximos carnavais do tossidor-torcedor sejam melhores...

 
Às 7:30 PM , Anonymous Anônimo disse...

Se as pessoas soubessem o que rola de tráfico de influência, dinheiro gordo e falcatruas nas decisões das Escolas campeãs, ninguém se importaria muito, perderia o sono ou teria pesadelos. Já houve um tempo em que eu torcia pela Mocidade de Padre Miguel por causa da bateria. Era espetacular o repicar dos tamborins. Depois todas as outras escolas passaram a imitar a batida da Mocidade. Agora, vendo a mesmice desfilar, só que com nomes diferentes, pra mim tanto faz quem ganha o quê. Ainda mais qdo a campeã é resolvida às custas de maracutaia. Nem me dou ao trabalho de ligar a TV.
(seu comentário sobre o PM quase me fez chorar... rss. Passa nas esquinas pq deixei um comment a respeito do seu)

 
Às 4:19 AM , Anonymous Anônimo disse...

oi guto, ótimo texto. beijos, pedrita

 
Às 5:02 AM , Blogger Jane Malaquias disse...

Dugonguto; um peixe que sonha de olhos abertos!

 

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