quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Mudubim e a Lata Preta

Mocinha, mas já presa às garras das dores fulgurantes. A relação com Péris sempre foi imprevisível e tumultuada. O que os unia era o calor de dois corpos jovens; um não sabia viver sem a temperatura do outro. Havia ali uma espécie de vício basal que metabolizava a paixão incendiária e os nivelava. Aquilo era ardor, mas também guerra; a lavra do amor acompanhada de estrago e destruição. Sem emitir um sinal sequer, Péris sumiu e nunca mais Helenita soube por onde andava o seu Mudubim, modo carinhoso como o chamava, um jeitinho de atenuar a brabeza dele.

Desde então Helenita se via como a mais miserável das mulheres. Infeliz, desprezível, enfeou. Mas o destino logo a compensou colocando Nascimento em suas trilhas. Em pouco tempo, voltou a ter vaidades e em sua memória já não havia o menor resquício de Péris. Nascimento era o amor de sua vida. Generoso, encantador e afeito a surpresas. Certo fim de tarde, ele a levou para a beira-mar de Cabedelo, onde tantas vezes viu o sol se pôr da forma mais delicada e elegante. À medida que iam se aproximando do lugar, aumentava o som de um grupo de pessoas cantando “Que me leve e me trague, tem dó / nas profundezas do mar/ devore-me o peixe preto/ para salvar-me de amar”. Neste dia, Helenita achou uma lata preta em um pequeno declive, encostada em uma pedra, e colocou-a na bolsa sem que Nascimento percebesse.

Por alguns anos, guardou a lata na gaveta da mesinha de cabeceira que ficava próxima ao lado em que dormia na cama. Foi Dona Chaim quem disse que ela estava com um instrumento poderoso nas mãos. Que muita gente se danava, mas uns poucos conheciam a glória. Era coisa de arriscar. A lata preta de Cabedelo já transformara a vida de muita gente, para o bem ou para o mal. E sempre, de forma inexplicável, voltava à encosta para que outros a pegassem e revirassem seus destinos. Dona Chaim ia na casa da moça toda vez que os ponteiros do relógio bambeavam. E a moça gostava de passar o tempo com aquela senhora doce e cheia de mistérios.

A vida de Helenita e Nascimento ia bem. Mas nos últimos dias, diferentemente do começo, andava sonhando com Péris, lembrando do cheiro, sentindo falta daquele calor. Ela queria apagar de vez o passado. Trocar de cidade, conhecer novos ares, se afastar de vestígio de coisa que trouxesse qualquer perna de lembrança.

Numa noite em que Nascimento fazia um de seus serões para ganhar mais algum, Helenita foi inteiramente tomada pela presença do outro. Sentia como se fosse agora a quentura de antes. Não era possível aquilo, depois de tanto tempo. Mirava a lata e mil coisas sacudiam a sua cabeça. Apalpava a maldita. Revolvia-a o medo de perder Nascimento, ou mesmo a ameaça de que algo sinistro acontecesse. Lembrava das palavras de Dona Chaim, para quem a lata era um monstro disfarçado de objeto.

- Se eu fosse você esfregava, pagava pra ver. Cê é jovem, Helenita, tem tempo pra reverter qualquer desgraça. Eu não. Sou velha e estou mais pra lá do que pra cá.

O suor de Helenita escorria copiosamente, como um avanço da cegueira que determinadas angústias trazem. O cabelo grudado na testa, a pele ensebada de aflição e do interesse em desvendar. Distraía-se com os pingos de chuva da madrugada rápida. Foi até a cozinha. Tomou um copo d’água. Ali mesmo, esfregou a lata preta com vontade, para afastar Mudubim de uma vez por todas de sua vida. Ele que foi-se embora, não podia mais fazer morada dentro dela. Era só de Nascimento, este sim, homem bom e dedicado.

Um odor insuportável começou a ser exalado da lata. Um cheiro de estrume, forte, insistente, foi tomando conta do ambiente e em pouco tempo impregnou toda a casa. Helenita começou a sentir coceiras incontroláveis e, sem conseguir se conter, rasgava o vestido, rolava pelo chão e gritava feito louca por Péris e por Nascimento.

Ao chegar do trabalho, Nascimento toma um susto. Helenita está deitada no chão, com o corpo amarfanhado, repleto de vincos. Parece desmaiada. Ele a sacode com um misto de tormento e serenidade. “Helenita, Helenita, o que aconteceu? Você está bem?” A mulher lentamente abre os olhos. “Meu Mudubim, você voltou!” A frase escapa junto com um sorriso mole. Nascimento retribui o sorriso. Acabara de ganhar um doce apelido da amada.

Ele a carrega no colo e a coloca na cama. Sente um leve fedor, como se fosse um chorume que viesse da cozinha. Vai até lá e vê uma lata preta no chão. O cheiro parece vir dela. Pega a lata e a joga no lixo. Repete baixinho: Mudubim. E dá mais um breve sorriso, iluminado pelos primeiros raios de sol que anunciam o amanhecer pela fresta da janela.

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6 Comentários:

Às 1:44 AM , Anonymous Anônimo disse...

Que bonito... Nascimento liberta a moça sem saber...


Adorei.. adorei!!!
Beijo

 
Às 6:32 AM , Anonymous Anônimo disse...

Olá. Vim agradecer e retribuir a visita que fizeste no Ouça Bem.
Adorei o texto. Prende o leitor até o final.
Magias e mistérios sempre são um bom tema.
Abração.

 
Às 7:23 AM , Blogger Flavio Vaz disse...

Muito bom o texto. Passei aqui pra dizer que botei o seu blog na lista de blogs bacanas do meu cafofo. Abração.

 
Às 12:54 PM , Blogger Jane Malaquias disse...

modubim arrasa !

 
Às 5:33 AM , Blogger Jana disse...

Lindo, amores que doem na carne, que se renovam e se perdem

Beijos

 
Às 9:23 PM , Blogger Manoela disse...

... às vezes o passado pode mesmo ter esse odor fétido... parece que houve uma libertação, um rensacimento... abraço e bom final de semana!

 

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