Espiráculo
- Ai amor, eu me sinto tão feliz ao teu lado. Tão leve, tão livre. E por aí as pessoas vivem dizendo que é difícil amar. Sofrem, amargam a solidão, dissipam-se o tempo todo por não terem maturidade suficiente para experimentar e conviver com as ambigüidades decorrentes de um relacionamento a dois. Vincular-se não é castrar-se e nós sabemos bem disso, não é? Tampouco é fundir-se. Nós entendemos o mecanismo de simultaneamente nos unir e nos manter separados.
Eu penso em como o indivíduo se engana ao associar solidão e liberdade. No fundo não vê que não passa de uma prisão narcísica. Preferem a autocelebração a beber das delícias de compartilhar a intimidade. São Procustos centrados em si. Transformam-se em seres insuportáveis por acumularem tanto veneno. Cobranças, ciúme...
... Eu acho que o caminho é se libertar desta materialidade, deste atraso que é se fechar em um espaço apenas concreto. É preciso ser capaz de abstrair para conseguir amar, como nós fazemos tão perfeitamente. As regras são necessárias, é bem verdade, mas...
...E se apegam. Se apegar ao gasto, meu Deus!...
...A crise contemporânea: o vácuo de valores, o mito da eterna insatisfação humana, a fabricação de personalidades pré-moldadas, as projeções dessas máscaras, as válvulas de escape...
...O ser humano está diluído e irreconhecível, querendo o que não tem, frustrando-se, andando de muletas....
...Ai, ainda bem que você me entende, capta minha consciência, sabe que o amor é um convite para sair de si...
...Junta os fragmentos para preservar o sentido de totalidade...
...Evolução é isto: aperfeiçoamento calcado no respeito...
...Como se eu fosse um depósito de suas irresoluções. Homens avaros... Rui?... Rui, Rui! - exclamou Denise, sacudindo-o.
- Que foi?
- Você não ouviu nada do que eu estava falando, não é?
- Desculpe, acabei pegando no sono. Você pode repetir?
- Repetir? Nós estamos numa sorveteria. E seu sundae está derretendo.
- Há quanto tempo eu estou dormindo?
- Não sei.
- Nossa, que caos! Pelo menos ainda posso aproveitar o morango.
- Não é morango, Rui. É cereja.
Eu penso em como o indivíduo se engana ao associar solidão e liberdade. No fundo não vê que não passa de uma prisão narcísica. Preferem a autocelebração a beber das delícias de compartilhar a intimidade. São Procustos centrados em si. Transformam-se em seres insuportáveis por acumularem tanto veneno. Cobranças, ciúme...
... Eu acho que o caminho é se libertar desta materialidade, deste atraso que é se fechar em um espaço apenas concreto. É preciso ser capaz de abstrair para conseguir amar, como nós fazemos tão perfeitamente. As regras são necessárias, é bem verdade, mas...
...E se apegam. Se apegar ao gasto, meu Deus!...
...A crise contemporânea: o vácuo de valores, o mito da eterna insatisfação humana, a fabricação de personalidades pré-moldadas, as projeções dessas máscaras, as válvulas de escape...
...O ser humano está diluído e irreconhecível, querendo o que não tem, frustrando-se, andando de muletas....
...Ai, ainda bem que você me entende, capta minha consciência, sabe que o amor é um convite para sair de si...
...Junta os fragmentos para preservar o sentido de totalidade...
...Evolução é isto: aperfeiçoamento calcado no respeito...
...Como se eu fosse um depósito de suas irresoluções. Homens avaros... Rui?... Rui, Rui! - exclamou Denise, sacudindo-o.
- Que foi?
- Você não ouviu nada do que eu estava falando, não é?
- Desculpe, acabei pegando no sono. Você pode repetir?
- Repetir? Nós estamos numa sorveteria. E seu sundae está derretendo.
- Há quanto tempo eu estou dormindo?
- Não sei.
- Nossa, que caos! Pelo menos ainda posso aproveitar o morango.
- Não é morango, Rui. É cereja.
Neste momento, a campainha do 901 toca e Rui, de meias, cuecas e com uma fisionomia cansada, vai atender. Flávia, exausta depois de mais um dia infernal, esquecera a chave de casa.
- Oi querido. Estou com a pele sebosa. Preciso de um banho – anunciou seu desmonte físico, beijando suavemente os lábios de Rui.
Flávia joga a bolsa no sofá, vai logo tirando a blusa e se dirigindo ao banheiro, movida pela agonia de um calor que insuportavelmente coça a pele. O banho do cansaço é sem tempo. Da sala, Rui concentra-se no barulho da água, que ora incide sobre Flávia, ora sobre o chão. Esse movimento sonoro é violento: por alterar-se sem aviso e por castigar o ouvido de forma delicada.
Rui escuta um ruído na fechadura da porta e tem a sensação de que Flávia está chegando novamente. Mas desta vez é Cláudia quem entra com um sorriso largo e repleta de embrulhos. Despeja os pacotes de qualquer jeito sobre a mesa e corre para o banheiro apertada pela urina. Já aliviada, sai rapidamente para a área de serviços e se surpreende.
- Rui, quem é esta mulher?
- Que mulher?
- Esta, que está lavando roupas no tanque enrolada em uma toalha.
- Oi querido. Estou com a pele sebosa. Preciso de um banho – anunciou seu desmonte físico, beijando suavemente os lábios de Rui.
Flávia joga a bolsa no sofá, vai logo tirando a blusa e se dirigindo ao banheiro, movida pela agonia de um calor que insuportavelmente coça a pele. O banho do cansaço é sem tempo. Da sala, Rui concentra-se no barulho da água, que ora incide sobre Flávia, ora sobre o chão. Esse movimento sonoro é violento: por alterar-se sem aviso e por castigar o ouvido de forma delicada.
Rui escuta um ruído na fechadura da porta e tem a sensação de que Flávia está chegando novamente. Mas desta vez é Cláudia quem entra com um sorriso largo e repleta de embrulhos. Despeja os pacotes de qualquer jeito sobre a mesa e corre para o banheiro apertada pela urina. Já aliviada, sai rapidamente para a área de serviços e se surpreende.
- Rui, quem é esta mulher?
- Que mulher?
- Esta, que está lavando roupas no tanque enrolada em uma toalha.
Rui vai até a área de serviços. Não há nenhuma mulher aí – diz enquanto penteia o cabelo depois de ter tomado um banho demorado.
- Para aonde você vai, arrumado desse jeito e a esta hora?
- Vou buscar Alice no aeroporto.
- Alice?
- Sim Cíntia. Alice, minha companheira.
Rui olha para a bolsa que está no sofá.
- Bonita bolsa, Cíntia. Onde você comprou? – e sai para pegar o táxi que havia chamado e seguir o seu destino.
O caminho para o aeroporto é sinuoso. Não só porque Rui está distraído ou porque o taxista optou pelo percurso mais demorado. Cada ponto de luz que vem das janelas dos apartamentos confirma um incômodo ou um esquecimento. E é para esses pontos luminosos que os olhos de Rui se voltam. Enquanto isso, o taxista guia o seu veículo, curva após curva – umas mais abertas, outras mais fechadas – proporcionando ao seu passageiro um balanço e um tempo inúteis. Sim, um tempo inútil e rasteiro, embora extenso.
- Senhor, senhor. Chegamos ao aeroporto.
Rui se assusta com o modo brusco como o motorista o desperta. Ele paga a corrida e sai do táxi apressado. Faltam poucos minutos para o desembarque de Alice e o celular de Rui toca.
- Alô.
- Querido, tentei falar contigo hoje, mas não havia ninguém em casa.
- Você não vem?
- Meu vôo foi cancelado. Chego amanhã no mesmo horário.
- Sinto saudades.
- Não estou te ouvindo bem...
A bateria descarregou e a ligação caiu.
Na saída do aeroporto, Rui coloca suas malas no chão e se espreguiça um pouco. Tira a última maçã e umas barras de cereal que carregava em uma sacola e joga a sacola no lixo. Vamos, o carro está logo adiante – diz Denise. Os dois entram no carro e ela vai conduzindo.
- Estava ansiosa com a sua volta. Sabe, você viajou logo depois daquela briga estúpida que tivemos e eu fiquei dissipada, destruída. Não consigo conviver com a ameaça da desconjuntura. Por um momento, mesmo sabendo que sua viagem era breve, tive a sensação de que você iria para não mais voltar. Nós não podemos cair nesse poço sem fundo, nessa guerrilha infantil, e com isso mimetizar o que há de mais pernicioso nas relações afetivas que estamos acostumados a ver por aí... Rui, meu Deus, Rui!
- O que foi desta vez Denise?
- Você está de só de meias e cuecas. Você viajou só de meias e cuecas? O mundo está mesmo perdido! Como é que permitem alguém embarcar desse jeito? Não é possível que...
Durante todo o trajeto, Rui se concentra nas mordidas que despedaçam a maçã e vai contemplando o sol de uma manhã que se anuncia irradiante. Ele olha para aquela bola estalada no céu e se impregna com o amarelo vivo que vem dela.
- Chegamos – avisa Rui.
Ele desce do automóvel e Denise fica. Entra pelo saguão do prédio, chama o elevador, aperta o botão do nono andar. No quinto, o elevador pára e uma mulher de meia-idade entra e fita-o com estranheza. Ao abrir a porta de casa, Rui se depara com Cláudia, impaciente, andando de um canto a outro da sala, a esperá-lo.
- Rui, você está perdendo as estribeiras. Praticamente todo dia você vai para a farra, mas chegar em casa só de meias e cuecas já é demais, não acha?
Rui permanece mudo.
- Vem cá. Deixa eu te cheirar. Que hálito é este de cereja?
- Não é cereja, Cláudia. É morango.
No corredor que dá acesso ao banheiro Rui cruza com Flávia – Querido, você viu a minha bolsa? Eu tinha quase certeza que ela estava em cima do sofá...
- Querido, tentei falar contigo hoje, mas não havia ninguém em casa.
- Você não vem?
- Meu vôo foi cancelado. Chego amanhã no mesmo horário.
- Sinto saudades.
- Não estou te ouvindo bem...
A bateria descarregou e a ligação caiu.
Na saída do aeroporto, Rui coloca suas malas no chão e se espreguiça um pouco. Tira a última maçã e umas barras de cereal que carregava em uma sacola e joga a sacola no lixo. Vamos, o carro está logo adiante – diz Denise. Os dois entram no carro e ela vai conduzindo.
- Estava ansiosa com a sua volta. Sabe, você viajou logo depois daquela briga estúpida que tivemos e eu fiquei dissipada, destruída. Não consigo conviver com a ameaça da desconjuntura. Por um momento, mesmo sabendo que sua viagem era breve, tive a sensação de que você iria para não mais voltar. Nós não podemos cair nesse poço sem fundo, nessa guerrilha infantil, e com isso mimetizar o que há de mais pernicioso nas relações afetivas que estamos acostumados a ver por aí... Rui, meu Deus, Rui!
- O que foi desta vez Denise?
- Você está de só de meias e cuecas. Você viajou só de meias e cuecas? O mundo está mesmo perdido! Como é que permitem alguém embarcar desse jeito? Não é possível que...
Durante todo o trajeto, Rui se concentra nas mordidas que despedaçam a maçã e vai contemplando o sol de uma manhã que se anuncia irradiante. Ele olha para aquela bola estalada no céu e se impregna com o amarelo vivo que vem dela.
- Chegamos – avisa Rui.
Ele desce do automóvel e Denise fica. Entra pelo saguão do prédio, chama o elevador, aperta o botão do nono andar. No quinto, o elevador pára e uma mulher de meia-idade entra e fita-o com estranheza. Ao abrir a porta de casa, Rui se depara com Cláudia, impaciente, andando de um canto a outro da sala, a esperá-lo.
- Rui, você está perdendo as estribeiras. Praticamente todo dia você vai para a farra, mas chegar em casa só de meias e cuecas já é demais, não acha?
Rui permanece mudo.
- Vem cá. Deixa eu te cheirar. Que hálito é este de cereja?
- Não é cereja, Cláudia. É morango.
No corredor que dá acesso ao banheiro Rui cruza com Flávia – Querido, você viu a minha bolsa? Eu tinha quase certeza que ela estava em cima do sofá...
Na área de serviço, Alice parece tranqüila enrolada na toalha e lavando roupas no tanque. Rui a observa um pouco. Ela nota a presença dele, mas o ignora completamente. Rui então volta para a sala e ouve o recado que está na secretária eletrônica.
- Rui, é Cíntia. Por que você não veio me buscar no aeroporto? Eu...
Neste momento, a campainha do 901 toca.
7 Comentários:
Estou agradecendo a visita que fez ao meu blog..volte sempre que quiser.
voltarei aqui também!
beijo
Eu sempre disse que amor não é duas metades, mas dois inteiros.. completos.. enfim..
puxa vida.. pobre Rui.. rsrs
Beijo
Esta história tem um gosto de piracema.
Quantas mulheres existem dentro desse Rui!!!E se ele as desfolhar, como se fossem margaridas de quem se arranca as p'etalas,sobrar'a apenas um homem de meias e cueca que transita no cotidiano trivial como se fosse sonho.Nao ha turbulencia nesse sonho, apenas a confort'avel ausencia de dasafios.Todas as mulheres do Rui sao uma s'o, sao facetas do feminino morno e sem maiores consequencias. E Rui se deixa ficar entre elas,displicente,quase im'ovel em sua indiferenca.
Lu, a sua interpretação é boa. O Rui é um preguiçoso. Ele tem preguiça de mergulhar. E vive sufocado justamente por manter-se na superfície.
E ele faz sexo com todas???
E eu nem sei se entendi essa novela direito pq meu sorvete estava derretendo - rs...
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