domingo, maio 13, 2007

O sublime andar esquisito


Allyson anda como um boneco João Teimoso. A cada passo, parece que vai cair para algum lado. Porém, retorna sempre ao seu centro imaginário, ao seu eixo cego. Ele vem com um copo de água na mão, balança pra lá e pra cá, e nos oferece a tensão de admirar as coisas que estão para se desfazer a qualquer momento. Quem assiste espera pelo barulho do vidro se espatifando no chão, que irá se molhar e aguardar um pano sujo para secá-lo. Mas isso não acontece, pois Allyson é um grande trapaceiro. Com seu andar esquisito, equilibra-se e desequilibra os que o vêem passar. E engana com tanta superioridade que chega a plantar o desejo de tê-lo sempre andando.

Ele senta e põe o copo a seu lado, em cima da mesa. É um momento cruel, em que toda a delícia é paralisada, em que todo o assombro se apaga. Resta a torcida por algum acontecimento corriqueiro, que o tire da cadeira. Um chamado sem importância, um documento a seus cuidados, uma instrução rápida a ser transmitida, um fax. Mas Allyson é novato, ainda não está envolvido com muitas atividades, não é solicitado o bastante para levantar daquela cadeira várias vezes ao dia.

De onde estou consigo apenas ver a sua cabeça. Às vezes, quando ele anda, é a única parte do corpo que não balança. Nessas horas, o movimento fica mais desconcertante, pois dá a impressão de que são duas pessoas fundidas. Cria-se mais uma expectativa: a de que uma parte vai se descolar da outra e Allyson se transformará em um corpo sem cabeça e em uma cabeça sem corpo.

O tempo percorre a tarde e Allyson continua sentado. Entre uma conversa e outra, lança um sorriso simpático. Tenho a idéia de ligar para o ramal da assessora, que está viajando a serviço. A mesa dela fica próxima a dele. Consulto a minha lista de ramais, faço o chamado. Todos estão concentrados em suas tarefas. Depois do terceiro toque, ele se levanta e vai atender o telefone.

- Por favor, eu gostaria de falar com a Sra. Laura Fruegel.
- A Laura está fora, só volta na semana que vem. Em que posso ajudá-lo?
- Ela ficou de me passar as informações sobre o andamento da implantação da fábrica de Penedo. Disse que se não estivesse, deixaria um documento com o Júlio.
- Só um momento, por favor.

Allyson vai até a estação de trabalho de Júlio. É uma boa distância. Ele vai daquele jeito, corpo oscilante, cabeça fixa. Percebo mais um detalhe: as mãos aparentam estar mais moles que o restante do corpo e os dedos se movem ágeis. Sinto como se elas fossem despencar e se mover pelo solo como os tentáculos de um bicho.

- Senhor... Desculpe, qual o seu nome?
- Arnaldo.
- Sr. Arnaldo, o Júlio falou que não há nada que a Laura tenha deixado com ele.
- Então, por favor, veja com o Pedro.

Allyson mais uma vez anda pela extensa área da repartição. Corpo-pêndulo, falsamente ameaçador. Digna e silenciosamente magnético.

- Senhor, o Pedro também não tem ciência do documento.
- É muito importante. Por favor, faça mais uma tentativa. Fale com o Alcântara.

Neste momento ele vem até mim. É a primeira vez que o vejo de frente. Posso observar que seus olhos são como duas bolas gelatinosas, que seu rosto é incerto e derretido. Posso ver fundo em seus olhos que algo vai se desintegrar, que o próximo passo é uma mentira, que aquele braço esticado na minha direção irá soltar algum pedaço de pele. O seu traçado é torto; a sua cadência é ereta.

Entrego qualquer documento a ele. Allyson volta, com o papel na mão, para checar se é isso o que o Sr. Arnaldo precisa. Desligo o telefone e ele retorna para me devolver o papel.

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8 Comentários:

Às 9:44 AM , Blogger Raimundo Neto disse...

E meu próximo passo, depois do comentário, mais uma vez, é que levar esse texto pra casa.

Bom, muito bom.

Abraço.

 
Às 4:58 PM , Anonymous Anônimo disse...

Por que será que eu ví um funcionário público alí? Afe.. acho que sou bancária há tempo demais.. rsrs

Beijos

 
Às 9:02 PM , Blogger Duda Bandit disse...

e quem tem ciência? abração, cara.

 
Às 7:16 AM , Anonymous Anônimo disse...

Uma grande sacada. O mundo não sobreviverá sem o sarcasmo.
Adorei o tetxo!

 
Às 11:40 AM , Anonymous Anônimo disse...

leitura interessante

;***

 
Às 8:37 AM , Blogger Jane Malaquias disse...

Ele habita o movimento do mundo, sob seus pés a terra treme, corcoveia, desliza, faz curvas inimagináveis tentando derrubá-lo mas ele não cai porque é um pingente pendurado. Se caísse, aos olhos dos outros, sairia voando para o infinito.

 
Às 7:27 AM , Blogger Lidiane disse...

Eu aqui, lendo você.
Sabe o que me fez lembrar? Aqueles contos em que os escritores eram funcionários públicos. E jornalistas. Ou os dois. Aqueles contos que não se fazem mais. Contos de Drummond, Machado, Gogol...
Aqueles contos em que toda uma gente percorre os olhos pelas repartições públicas, vivendo em um mundo que já não existe, ouvindo conversas que nunca mais serão ditas.

Preciso dizer que gostei muito?

 
Às 3:30 PM , Anonymous Anônimo disse...

Gostei. www.chamedicinal.com.br

 

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