Uma dia veio o João me dizer que a felicidade está no dinheiro, na capacidade de ter as coisas. Hum, coitado do João. Ele nunca ouviu Vapor Barato, nem curtiu uma de Tim Maia.
Depois a Denise me contou que ser bela é a onda. A felicidade está no que o espelho de uma academia de ginástica consegue mentir. Denise é gostosa, mas ninguém sabe.
Carolina diz que é questão de mérito, competência. Para ser feliz, deve se fazer planos, cronogramas, investimento, análise de custos e benefícios e possíveis riscos. Carolina jamais vestiu um pijama na vida.
Já Lidinha, religiosa e cheia de moral, não perde tempo com prazeres tolos. O lance dela é sacrifício. Juntar para construir. Comprou terreno, está montando casa. Cimento, pedra, areia, tinta e meses de economia e aborrecimentos.
Tonico acaba de sair da prisão. Impaciente, na fila do banco, quis malandrear. Furou a fila, um aposentado reclamou; ele deu um soco na cara velha e murcha do contestador, que não suportou e morreu ali mesmo, na frente de todos. Tonico era macumbeiro e o aposentado um tipo de disfarce, pois ganhava a vida como pastor da Universal. O crime levou Tonico para trás das grades, lugar onde se põe toda felicidade inconfessa.
Mestre Juca Boêmio vivia rodeado de amigos nas farras que fazia no Burundú, boteco quente da redondeza. Adoeceu de uma doença que até hoje não se diagnosticou. Perdeu mais de trinta quilos, ficou encurvado, arriado de não agüentar ficar em pé. Passou sete meses no hospital e só recebeu três visitas. De um dia para o outro, o corpo voltou a ficar reto, pouco a pouco foi recuperando peso. Ganhou alta e nunca mais baixou no Burundú.
Soube que todos eles foram premiados em um sorteio realizado por uma empresa de calçados, onde fizeram compras. O prêmio: um cruzeiro por mares caribenhos. Todos recusaram. Sabiam ao que estavam concorrendo, mas na hora H não suportaram.
Ganhar não é para João. Assim, financeiramente falando, ele é mais liso do que bunda de recém-nascido. Então João é o trauma, a frustração, a contrariedade, tudo na mesma estante. Tem a face contraída das dores do que nunca viveu.
Da mesma forma, engordar não é para Denise - seis refeições diárias durante dez dias entre mares e enjôos. Quis não. Seu corpo, maltratado pela ausência de poesia, nunca se permitiu apanhar da disciplina. Denise é a musa-refém da submissão ao olhar alheio. Até o seu sorriso é musculoso e seco, sem nenhuma carninha para apertar.
Para Carolina, sair dos planos é o mesmo que ser mutilada. Não podia se meter em um cruzeiro e deixar de lado as planilhas, gráficos e plantas da reforma da casa. O novo jardim, os móveis modernos, a bela decoração. Além disso, seu filho tirara seis notas vermelhas na escola e estava pendurado no último bimestre, perigando reprovação. Tinha que ensinar suas lições de mérito e competência para o garoto.
Tonico quis continuar batendo seu tambor e incofessando a felicidade; tinha olho gordo para desmanchar, nêga Luzia para conquistar. Daí, mais jogo era entregar-se ao arranjo de ervas e cheiros, para que a vida não lhe assoprasse mais veneno e a simpatia dos ventos voltasse a fazer morada em seu coração.
Mestre Juca Boêmio adoecia de novo só de pensar em alguma coisa que não fosse se esticar. Vivia deitado em rede e agora descobriu o Pilates, salvação da lavoura. Nunca mais ficaria troncho. Gente demais em um ambiente com mesa, bebida e comida, ainda mais com fartura e requinte, trazia náusea de memória.
Lidinha não podia juntar o cruzeiro para construir nada. O mar não tem tijolo; as ondas não têm telhado. E Lidinha também é daquelas que acredita que quando a esmola é muita até o santo desconfia. Mas e o santo? Pelo menos o de Lidinha nunca desconfiou de nada.
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