sábado, junho 30, 2007

A verdade que rebola


Anselmo era jornalista e estava desempregado. Um bico aqui, outro ali, dava o seu rebolado, o seu contorcionismo. O telefone toca. Um editor latrina a proposta - algo mais ou menos assim, mas não com estas palavras: Anselmo, estamos precisando de um artigo sobre Wagner. Não encontramos ninguém que topasse fazer pelos míseros reais que temos para pagar. Daí, pensamos em você. Você topa?

Anselmo não sabia nada sobre Wagner, mas topou. Afinal, a versatilidade é uma virtude que não escapa aos jornalistas; não poderia ser de outro modo para quem supostamente está sempre em busca da verdade. Escreveu, então, o seguinte texto:

Wagner: o desiluminado

Na segunda metade do século XVIII ainda florescia o Iluminismo e, portanto, a concepção de um projeto coletivo cujo sentido original era libertar o homem de autoridades míticas e das opressões sociais ao postular sua capacidade de autodeterminação. Essa idéia de construção era rigidamente centralizada num discurso racionalista e moralista que serviu para disfarçar as contradições internas, os conflitos políticos, crises econômicas, angústias coletivas e sofrimentos existenciais da humanidade. Embora um par de botas não valha mais que Shakespeare, a crença na impossibilidade de o indivíduo ignorante conhecer a liberdade ou ainda em que era necessário vencer a desordem dos apetites para se tornar um indivíduo – condição adquirida à medida em que este se afastava de seu estado natural – revela-se pequena quando se observa que para Hegel existiu Schopenhauer como uma espécie de antídoto filosófico. Em Hegel, entre o homem e o ser impõe-se a História atrelando dor e razão de um modo muito poderoso, aspecto evidenciado pela Revolução Francesa; já para Schopenhauer, a fonte dessa dor está no primado do instinto irracional do homem, que o habita desde a Mesopotâmia e fora esquecido pelos iluministas ao preço de incontidas neuroses individuais e sociais.

É nesse contexto histórico-filosófico que surge o alemão Richard Wagner (1801-1883), considerado um dos maiores compositores de todos os tempos. Sua produção, com efeito, foi fruto da sucumbência de um mundo dominado pelo poder a um outro, de amor e beleza, refletido e propagado pelo que ele denominou arte total. Tal concepção repudiava a visão iluminista de mundo e tampouco era uma re-significação de um modelo divino de representação da realidade. O que Wagner buscou durante toda a vida foi aliar razão e imaginação para instrumentalizar uma construção mítica da linguagem e por intermédio dela abrir canais de libertação das algemas iluministas. A comunhão transcendente pela arte total engloba uma mitologia a serviço das idéias, encaradas aqui como fagulhas de rompimento com um silêncio cósmico que atormenta o homem fechado em sua consciência.

Para isso, desenvolveu um estilo de composição que valorizava a tensão e o desprezo pelos formatos de construção melódica utilizados até aquele momento, formulando espasmos contínuos e adicionando ao seu drama musical a vastidão romântica e o desregramento dos sentidos – tão ressaltados depois, no primeiro caso por Baudelaire, e no segundo por Rimbaud, na literatura simbolista francesa. As peças de Wagner, apesar de sua grandiosa unidade orgânica, introduziram uma série de inovações estéticas e conceituais, sendo a principal delas a combinação dos estilos orquestrais de Berlioz e Meyerbeer e as experiências harmônicas de Lizt com uma estrutura dramática nitidamente influenciada pelo contato com a obra de Shakespeare. Dessa forma, Wagner acabou promovendo a equiparação entre voz e orquestra, alcançando equilíbrio entre texto, música e espetáculo. A continuidade do fluxo orquestral e o tratamento sinfônico aos leitmotive permitiram o controle das diversas etapas da ação – já que ele não utilizava a divisão dos atos em números e cenas. Os leitmotive possibilitaram a organização das idéias discutidas no drama, uma vez que estabeleceram uma associação entre os temas musicais e personagens, suas emoções ou determinadas ações dramáticas.

Wagner leva ao limite a fusão de música, poesia, teatro, tradição legendária e mitológica, pantomima, pintura e dança em O Anel dos Nibelungos, espetáculo que demorou mais de vinte anos (1853-1874) para ser composto e que talvez represente um caso sui generis de canalização de energia criativa para um único projeto artístico. Nele, deuses e dragões aparecem como representações dramatúrgicas de operários, plutocratas e outros produtos burgueses atacados por Wagner, numa espécie de corporificação do espírito demoníaco da era industrial. Nos termos de Adorno, em O Anel dos Nibelungos extrapola-se a experiência de “desespacialização do decurso temporal e a evocação reiterada da suspensão da consciência do texto musical”, potencializando o drama lírico como obra de arte total e o teatro como locus sagrado de fusão de todas as artes.

Por conta de sua enorme dimensão, a obra de Wagner deixou campo para diálogo com os artistas sucessores do romantismo, aparecendo diluído ou de forma marcante nas sinfonias de Mahler, nos poemas sinfônicos de Strauss, nos quadros de Morreau, na literatura de Oscar Wilde. Até hoje sensibiliza e estimula a gênese criativa de autores como Gerald Thomas ou Francis Ford Coppola (que sonorizou a antológica cena do ataque aéreo em Apocalipse Now com A Cavalgada das Valquírias). Talvez tamanho fôlego se explique pelo fato de que Wagner soube entender muito bem que o homem não encontra na solidão de sua consciência respostas para os problemas que o afligem, mas deve prosseguir na tentativa de instaurar esse diálogo existencial maior, pois sabe que em algum lugar, em algum momento, de alguma maneira, compreenderá e será compreendido.

No dia seguinte, Anselmo recebeu seu pagamento - R$ 80,00 – e uma outra proposta de trabalho.

- Adoramos o seu texto, você poderia escrever sobre o novo programa de auditório da TV Maquete, relacionando-o com os signos do kitsch e com os apelos típicos do formato?
- Claro.
- Ah, é importante você dizer em algum momento do texto que o ritmo é confuso e que tudo não passa de uma salada insossa.
- Ok, mas gostaria de rever a questão da grana. Não daria para...
- Anselmo, entendemos que é pouco. Mas veja o lado bom. Você é colunista, rapaz. Isso não é para qualquer um. Se o ganho financeiro é pequeno, os ganhos com prestígio, ao longo do tempo, serão incontáveis.
- Prestígio não dá crédito nos supermercados.
- Tenha paciência, estamos nos estruturando.

A Anselmo restava a submissão. Precisava escrever vários textos por mês para, juntando as migalhas, pagar as contas. E seguia saracoteando, entre frases de efeito, meias verdades e meias mentiras.

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6 Comentários:

Às 11:24 AM , Anonymous Anônimo disse...

Pobre Anselmo!
Nem só de prestígio vive o homem...
Mesmo que tardiamente, vim agradecer-te à visita em meu blog!
Abraços Guto e bom fim de semana.

 
Às 7:25 AM , Blogger Clementine disse...

É exatamente assim a realidade do nosso meio profissional. Paga-se pouco e tem-se também pouco. Adorei. Beijos, Clementine.

 
Às 10:20 AM , Blogger Jana disse...

E de certa forma não é assim que vivemos todos?

Beijos

 
Às 4:21 PM , Blogger Alexandre disse...

Cada um tem a sua maneira de estar na vida...

 
Às 5:29 PM , Anonymous Anônimo disse...

Bem, difícil mesmo é dar o devido valor ao trabalho, não é?
Escrever não enche barriga, eu já ouvi falar.
Cantar tbm não, dizem outros.
Mas o que seria de nós sem as letras escritas, faladas ou cantadas?

Beijo

 
Às 8:54 AM , Blogger Raimundo Neto disse...

Esse eu to levando pra casa, impresso!

Se escrever rendesse... ai, ai!

Abraços!

 

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