Quando o cinza é quente
O dia cinza é sem vigor para dar conta dos milhares de aloprados que gritam incessantemente na Avenida do Sossego. A chuva cai mais zelo que impedimento. Ela molha a cólera para da secura não brotar os estilhaços da inutilidade. Com a garganta molhada, não há fenda ou abalo que desmanche o protesto. Mesmo que a Terra se abra e engula os aloprados, todos estão úmidos de excitação, prontos para a defesa. Se isso acontecesse, a Terra os vomitaria de volta.
Eles pedem pelo fim da Guerra dos Cabaços, da chamada Cabaçagem. E também querem demolir os preços e obter mais vias de comida para os miseráveis lá de Poção das Almas. Ainda reclamam das filas que os velhos enfrentam para encher o bolso de migalhas. Migalhas que não compram sequer os remédios que abrandam seus estertores.
A Cabaçagem é uma guerra travada em portos, estradas, hospitais e escolas. Com os navios coxos, rodovias repletas de tumores, leitos rangendo de rabugice e letras que se afogam onde nem existe mar, o povo vai morrendo antes mesmo de nascer. De fome de saúde e de doenças várias, como a biteatite aguda, que ataca o cérebro já mal alimentado e deixa o sujeito com uma puta dor de cabeça. A danada lateja até explodir e a criatura morre com os miolos esparsos e absolutamente desengonçados. É a coisa mais triste de se ver quando acontece com crianças.
Do pouco que se sabe, a Cabaçagem começou em Zimbábue, espalhou-se pela África Setentrional, foi bater na Polônia e desembarcou aqui no Brasil lá pelos idos de mil novecentos e uma fumaça que não se foi ainda. Deve ter devastado outros territórios que a história se encarregou de fraudar. Seja lá como for, o protesto dos aloprados foi disparado por conta da morte de Dario Szjaman, um soldado que voltou para casa depois de anos de batalha com a glória de ter derrotado o gigante de mármore, um dos principais ícones cabaços. Dario foi baleado em uma padaria de esquina quando mordia um pedaço de pão com mortadela.
Com faixas, bandeiras e apitos, os aloprados caminham em direção a vários consulados. Jogam ovos e seus gritos úmidos nos muros. Um caminhão de som dos organizadores do protesto perde o freio e atropela um bolo de gente. Correria, empurra-empurra, suor e desespero tentando descerrar a fenda da secura, roubar o líquido espesso da garganta. Os aloprados abrem-se mais do que qualquer greta para dar passagem ao socorro. Logo se ouve dos vinte e cinco em estado grave no Hospital das Luzes. Um outro morreu na hora. Um padre que passava em meio ao tumulto quis fazer reza com o morto.
- Mas os cabaços não lançam bombas nas igrejas. Aliás, os templos de hoje são praticamente seus aliados. Ensinam uma fé sem simbologia e fazem o povo cismar que o seu caminho para a morte vai ser mais tranqüilo – vibram as cordas de um aloprado.
Diante da reverberação dessas palavras, o padre foi se encolhendo, contraindo queixo, peito, ombros, membros até virar uma concha de carne e osso. O morto continuou morto, talvez mais feliz.
Em Poção das Almas, Pitinho, magro e barrigudo de verme, assiste pela TV à sanha dos aloprados, ao espetáculo das beledicências. Empapuçado de fubá, ri com a cena do padre. Sua infância de angu e alegoria, chão seco e garganta molhada.
- Mãe, será que Poção vai ter mais comida?
- Filho, pode até ser. Mas se nos derem comida nos tiram o estômago.
- Filho, pode até ser. Mas se nos derem comida nos tiram o estômago.
Pitinho não economiza no fubá. Ele confia nos aloprados e não sai de frente da TV de jeito maneira. Percebe um velho curvo se aproximar de um aloprado. Ele tira umas migalhas do bolso e o chão começa a estrondar. Os corpos tilintam – são pulsões, moedas, vidros, louças, pedras de água. Os corpos são a loucura que não podem secar jamais. E aconteceu. A Terra se abriu e engoliu todo mundo, para o delírio e a perplexidade de Pitinho.
Durante alguns minutos, a imagem que aparece na TV é barrenta e borbulhosa. A Terra está enjoando e as bolhas vão aumentando de tamanho até que ela não agüenta mais e expele tudo de volta. Os aloprados voltam mais aloprados com a sua umidade invencível. As migalhas do velho ganham a cor do ouro e seu dorso vem mais prazenteiro que antes.
Pitinho chama a mãe para ver a maravilha. A mãe não chega e a TV, depois de uma série de chuviscos e pipocos, se apaga. Ele sente uma grande força vinda dos ares.
- Mãe, está chovendo comida!
O menino corre para pegar as delícias carnosas e divinas que caem do céu. A mãe está arriada de dor, no chão da cozinha improvisada, com as mãos do desespero postas sobre a barriga.
Marcadores: Armas de fogo, Camada fina de metal sobre o espelho, Histórias e invenções
11 Comentários:
Nunca vi coisa igual.
É ao teu texto que me refiro.
Belíssimo!
Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.
Abraços, flores, estrelas..
.
Me ocorreu: imagine se a TV cumprisse suas promessas... Abraço, Clementine.
Exclenete o texto. Ácido. Bate direto.
Nota 10!
Adorei a chuva mais zelo que impedimento.
Marco, já lí seu texto 3 vezes... esta foi a quarta...
...
Não sei comentar...
:o\
Beijos
Érica, sou Guto, não Marco.
Desculpa, Guto.. tinha acabado de comentar no blog do Marco.. e acabei trocando as bolas.
Perdão.
Erika.. com K e sem acento.. rsrs
Beijos
Eu sei. Foi proposital. Se eu colocasse o teu nome escrito corretamente, iria parecer um pito (de pito, basta o Pitinho - rs). Errando o teu nome depois que você trocou o meu, eu me igualo e acabo brincando com a história. Enfim, só quero que saiba que no fundo eu não liguei. Pensei assim: pô, será que o texto baratinou ela a ponto dela trocar meu nome? - rs. Como você falou que não sabia o que comentar...
Um grande beijo.
rsrsrs... acabou virando comentário toda esta história.. vai ver que foi a "mão do desespero" que me fez errar.. rrs
Beijos
Obrigada pela visita a meu blog. Coloquei postagem nova, abraço. Clementine.
Não gosto quando está cinza.
Lindo texto!
beijos.
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