sexta-feira, março 30, 2007

Nó de Touro

Foram anos de contrações intestinais irregulares. Devido ao nervo supostamente entusiasmado, e o supostamente só foi descoberto hoje, com o resultado de uma colonoscopia que invento agora. O fato é que deu um nó na tripa. Um nó raro, que só se desfaz com cirurgia.
É chamado nó de touro o incômodo, porque a anomalia assemelha as vísceras. Quase todo dia uma cólica mais fina do que aperto em coração judiado. Excrementos líquidos com sangue atado. Eu estou com um nó desses na alma, desde que o meu intestino se mudou para lá. Mas tenho fé nas borboletas do post anterior. Elas foram pintadas por Escher.

terça-feira, março 27, 2007

Miséria é Contar os Dias

Matar sem remorso. Tudo aquilo que me assombra. Toda data calendária. A espera do que fatalmente virá. Eu sumi com minhas vontades, para acompanhar o tempo, e me ver livre de prisão. Os desafetos passam longe, mas a desgraça insiste em amanhecer diariamente. Seria desgraça, se eu não tivesse aprendido a não me queixar mais. Então levanto e ando, com um pouco só de descontentamento, que é para não paralisar o presente.

Que bom as coisas que pousam no espírito como borboletas se assentando em flor. E que bom poder ver que o tamanho tempo retrocesso agora é lisa vontade de comer. Junto. Com todas as mãos e com todas as linhas. A saliva molha a esperança. A língua se coça de virtudes. A boca chupa o vento e me vadia sol. Sou pele e fantasia. Medo e luar.

quinta-feira, março 22, 2007

Dois Mergulhos

Murilo cortava o pedaço de carne sobre o prato. Quisera estar talhando as faces de Saturno, Senhor do Tempo enevoado e menos denso que a água. Sua saliva a diluir o bolo de seus medos, o amido de seus carmas, a lubrificar bloqueios e a deixar não menos úmida a maturidade de seus afetos brilhantes. Cada segundo trazia a lembrança de que a persistência pode ser um vento forte demais e arrastar seu corpo. Já se via mesmo, braços e pernas dissipados, flutuando em um oceano de grãos quadrados, a visão da bela morte entortando geometrias.

Em algumas horas Murilo deverá chegar em Ribeira do Pombal. Embrenhar-se no sertão baiano foi a maneira menos dolorosa que ele encontrou de fugir. Sabia que sua vida se tornaria um inferno. Sabia que aqueles homens iriam persegui-lo até o fim se preciso e, quando o pegassem, fariam o que quisessem e bem entendessem. Embora ele não tivesse feito nada, estava condenado. E não existe miséria mais exaustiva do que perseguição sem motivo.

O motorista apressa os passageiros. Dona Ademar ri das mugangas de um menino malabarista de mexericas e pode se perceber um caroço de feijão grudado nos dentes dela. Todos sobem e se ajeitam em suas poltronas. Dona Ademar está na janela; Murilo ao lado da velha, no corredor.

- Seu dente está sujo – avisa Murilo

A velha puxa um pequeno espelho da bolsa e vê o caroço de feijão, mais assanhado do que ela em tempos de juventude.

- Este motorista é muito nervoso. Nem espera o povo comer direito, escovar os dentes, fazer um asseio – queixava-se enquanto cutucava o caroço com a unha.

Murilo olhava para aquelas bochechas caídas. Pareciam esconder a glória com a fisionomia do cansaço. A insensível ação do tempo tanto nos perturba que nos desfigura. Não tirava os olhos das bochechas da velha.

- Aceita? - Murilo oferece uma bala.
- Eu quero, meu filho. Não é pra mim, mas pro meu netinho. Vou dar a ele quando chegar.

Os sacolejos e as manobras improvisadas denunciavam que a estrada não estava nada boa. De lá do fundo, um moço alto e magro tocava seu cavaquinho de modo inspirado e tímido, até que por conta de uma freada brusca ele foi ao chão com o seu instrumento. Teve de amargar o prejuízo do cavalete descolado e do rastilho rachado. O moço encarava seu cavaquinho empenado com o semblante afligido pela incerteza do conserto.
A monotonia da viagem era garantida pela paisagem árida. Murilo mergulhava em suas febres, ainda que a contragosto. A sua vida passava pela janela que dava para o solo seco. As velas gigantes que existiam no quarto daqueles homens eram o horror; não caberiam em qualquer castiçal. Seus perseguidores a trariam, tinha absoluta certeza. E passariam com tudo sobre o seu corpo, como um magnífico compressor. Só de imaginar, contraía-se inteiro e batia os dentes de cima com os de baixo, pausadamente, em um ritmo que dava nova duração aos segundos.

Percebeu uma menina lendo Subterrâneos da Liberdade. Não identificou com precisão o volume, mas era um exemplar de uma edição que ele um dia possuíra e que fora furtado não se sabe como. Com a mesma certeza das velas, acreditava que a menina era a ladra de seu livro. Era seu, de mais ninguém podia ser! Pensou em avançar em cima dela e tomar o livro de volta, mas uma centelha de razão o conteve. Contorcia-se e contorcia-se na poltrona. E os dentes batendo.

Dona Ademar roncava. Vivia o sono das pedras. Será que esta velha sonha? – Murilo perguntava mudo e inquieto. Em sua mente, novas hélices iniciavam movimentos autopermeáveis. Sentia uma vontade imensa de ir ao banheiro, dar aquela mijada longa, mas não podia. Lá dentro o carrasco está pronto para molestá-lo. E se não for com a vela, será com um tubo de cola garganta abaixo. Para que nunca mais possa falar ou para que sempre tenha que falar tudo de uma vez.

E essa cidade que não chega! A inquietude que aumenta, o ronco da velha cada vez mais irritante, o livro da menina que coça a sua alma. Infeliz, infeliz! xingava a si mesmo. Infeliz, infeliz! xingava também a menina. Dona Ademar acorda de sobressalto. Murilo em silêncio agradece a companhia daquela casa de rugas, onde ele quer morar para se proteger dos homens que o perseguem.

Chegamos! – o motorista dá o sinal. As pessoas saem uma a uma para pegar a sua bagagem. Murilo trazia a sua toda na mão. Ao desembarcar, correu para o meio da praça, onde avistara um poço. Lá deve haver água, preciso de água, sua hélice ventava no caminho. Pulou com toda a gana, com toda a sede e se espatifou no concreto do jeito mais extravagante que pôde. Ralou a testa e o ombro, de tão esquisita que foi a queda.

A cena soprou susto em Dona Ademar. Sem estardalhaço, jogou fora a bala que Murilo havia dado para ela. O rapaz foi levado ao hospital e socorrido sem muita demora.

- Como é que você arrumou isso rapaz? Ralar a cara na praça, onde já se viu? – a enfermeira ralhava como quem fala com uma criança.

Concentrado em sua dor física, Murilo aos poucos volta a se habituar à própria calma.

- Quanto tempo estes cortes levarão para cicatrizar?
- Se fizer os curativos direito, em duas semanas você deve estar bom.

Lá fora, beatas baianas de Ribeira do Pombal faziam, a compasso, a procissão de São Benedito, misturadas a pagadores de promessas e curiosos. Enquanto vai sendo remendado pela enfermeira, Murilo ouve o canto sussurrado das devotas. Elas carregam velas, temores, fé e graça.

sábado, março 17, 2007

As Rosas Falam

Não é querer imitar a rosa, nem desmerecê-la. A rosa é bonita porque desabrocha e murcha. Não dá a rosa pra ninguém porque só serve pra ele. Egoísmo inevitável que o protege.

Elias é estranho porque sente só pra si, não por desejo, mas por despreparo alheio. Vive de guardar verdadeiras explosões porque do lado de lá o que se assimila é disputa, utilitarismo e um jogo de ir contra que não é nada lúdico. De vez em quando Elias derrapa e diz que chora ao ler um conto de Clarice. Ele se desmonta, com o prazer de se ver mole, entregue, e em troca colhe ainda que secretamente o tapa da desinteressante certeza de que sua moleza não serve. É o trôpego de seus teores.

E foi feita mesmo para não servir. E foi feita rosa não submissa, com fragrância estúpida e nobre. Para ser recusada por ouvidos e narinas. E são muitas as rosas que Elias mastiga; com elas ensaboa a pele e pinga pétalas de cheiro em seus olhos. Rosas sem ensaio, sem vestígios – as flores menos mortas que existem.

Ele mesmo assombrado, queimado pela tocha do desassossego, não pode se separar dessas flores. Quando umas perdem a chama, outras nascem; também não ousa exaltá-las, para que elas não o persigam. Basta que o habitem. Já pensou muitas vezes em jogar todas elas fora, no lixo, sem ao menos embrulhá-las. Dar-lhes um fim triste, por teimosia, medo ou vingança. Pois as rosas que tem o revelam demais, descortiçam o abominável, a suprema essência da qual não se escapa. E Elias vira um garrancho, um borrão vivo, besta por se reconhecer mais uma vez principiante.
Por todas essas rosas delicadas e descorteses... a sua aceitação está nos mares, nas espumas das ondas. É para a garganta azul e salgada que Elias carrega as flores, em todo o corpo e em todo espírito. É por isso que não dá, nenhuma sequer. Porque um dia entende querer dar todas; porque já disse – outras nascem. E dar todas – e outras nascem – e dar todas – e outras nascem – e dar todas – e outras nascem... E nele, renovação de rosas ser ofício de poeta.

quarta-feira, março 14, 2007

Integral Bambu

Hoje é um dia doce, desses que a gente nem lembra do passado. No meio de bambus e de crianças. Elas fazem a festa. A festa integral. E nossas toxinas estão tão longe que nem o vento mais absurdo poderia as trazer de volta. Os amigos exaltam seus filhos, que respondem com a graça de serem sapecas. Já Anima Vagula pula, se alonga, se agarra e se enrosca. Ela é hélice, é mola, elástico, ímã, cheiro de mato e também detentora do sobe-e-desce mais sorridente que existe. Ela é foda, mas pouca gente sabe. O que a torna mais foda ainda.

A estrutura de bambus permite a acrobacia e a exatidão. O tempero das mãos, da consciência corporal de cada um. Ela até desliza, deu pra ver na fantasia que respinga de sua pele. Sim, Anima Vagula borrifa convites de sonho para mim. E me molha todinho com a sua audácia contida.

Depois de muito exercício, vem a vontade de comer como um pedido por mais vida. O colorido da comida disposta no prato nos impõe um êxtase que é quase uma ameaça. Brilha brócolis, brilha berinjela! Para que nós possamos mastigar esse brilho, precisamos ver e esquecer as cores. Compreender o realce como um elogio e eliminar a vaidade nas fezes. Só assim a riqueza não é um perigo.
A refeição abre as entranhas da tarde. O afeto profundo, o conteúdo amoroso, tudo isso que é chama exige um cochilo em que possamos dormir abraçados. O caminho é de regresso. A esta altura, não há mais sentimento-osso para roer. Já esteve em vários homens e agora descansa em sua casa, que é mais um canto alegre da cidade.

sábado, março 10, 2007

Infância Difícil? Isto aqui não é ornato não, rapaz!

Abaixo, segue um texto inspiradíssimo de Roberta Silva, escritora mineira. Foi a forma tardia que encontrei de não deixar passar em branco o Dia Internacional de Minhas Amadas.
E quem puder dar uma espiada no site Escritoras Suicidas, vale muito a pena. Lá, além de Roberta, outras autoras publicam suas ardências.
Boa leitura!
Alta Traição
Poderia ter dado de ombros. Ao invés, tremeu os joelhos. Dado uma seqüência rápida de socos em seu queixo. Dizer que é louco de amor e olhar no espelho para conferir a expressão? Mas não, só conseguiu um "tu-tu-tu-tu-tu-tu" para um simples "Tudo bem?". Patético foi que isso o fez conferir novamente a imagem. Desta vez, a de compreensivo-e-modesto. É pelo que consegue de você que o admiro. Perder o controle por alguém que fala de si como quem conta história de um santo e, pior, do qual alcançou um milagre?

Pense! Você assistiu Je Vous Salue Marie! e entendeu. Leu autores latinos, africanos, árabes. Concorda com Nietszche. Assina Caros Amigos e Carta Capital. É fã de Fidel Castro. Toca violoncelo e tem dois Frida Kallo. Falsos. Tudo bem, mas tem. Ter pena quando diz que é assim porque teve uma infância difícil? Infância difícil? Fora ele, milhões de brasileiros, bilhões mundo afora tiveram! Ele some por meses, liga de madrugada, bêbado, o deixa entrar, para que não enfie o carro num poste e dá para ele? Sem camisinha?

Em tempos de guerra cortariam sua língua, lhe ateariam fogo em praça pública. Alta traição. Todas as provas apontam-na, incontestavelmente. No júri, escolhidas pela promotoria, uma mulher que teve que sair de casa para trabalhar, uma senhora que queimou o sutiã em 70, outra seduzida, abandonada e renascida, uma socialista de carteirinha, uma lésbica, outra que bem podia ser a reencarnação de Lucrécia Borja. Mulheres que nos ajudaram a formar a consciência e conquistar tudo o que temos. O que somos.

Sua defesa, tímida, tenta, com argumentos esdrúxulos, impugná-las. Advogada-de-porta-de-cadeia (Não gastaria latim consigo mesma, não é?). Busca apoio no sangue das matronas beatas que corre em suas veias. Acostumadas ao comando de seus homens, a considerar o sofrimento virtude, a dar o melhor para ele e seus filhos e contentar-se com o mínimo e dizer-se feliz assim.

Conseguirá, no máximo, um olhar impaciente da juíza. Famosa pela severidade de suas penas, pela imparcialidade, pelo rigor. No peito uma pedra. Na parede, a chave da cidade e num baú bem trancado, rubras lingeries. Para todos, a juíza. Secretamente, a puta. O que espera de alguém assim? Compaixão?

Será um massacre. Em poucas horas o veredicto: — Culpada! Pena máxima!

Talvez se você tentasse uma fala última. Se dispensasse essa defesa medíocre, quem sabe? Levante-se e diga, em tom cambaleante que seja. Que por instantes, meses, quem sabe séculos, aceitou que era alguém sem estirpe, sem valor considerável. Que, por ter fornicado por séculos em troca de pão, sabedoria, reconhecimento, proteção, o diabo a quatro, sua natureza ficou irremediavelmente mestiça e vira-latas e que usaram esses argumentos, por tanto tempo e com tanta força contra você, que chegou mesmo a crer que eram válidos e que lhe faziam favor em beijá-la vez em quando. Quem sabe reconhecendo, diante do tribunal, que tem falhado consigo e com sua classe, pudesse, pelo menos, adiar a execução da sentença?

Proponha enclausurar-se em si. Comprometa-se a não se deixar usar mais por carência ou baixa auto-estima: "Só por hoje, não me deixarei usar. Não buscarei companhia só para disfarçar o medo de estar só comigo mesma. Lutarei até descobrir-me capaz de tomar as rédeas de minha vida. Passarei com bravura pela crise de abstinência até desintoxicar-me completamente e reconhecer-me inteira, acompanhada ou não".

Talvez assim, para seu governo, eu diminua minha pena.
Roberta Silva (Belo Horizonte-MG, 1971). Usa os pseudônimos Sweet Ragi (ponto de vista feminino) e Gulab Song (ponto de vista masculino). Vive em Belo Horizonte, tem poemas e contos publicados na Web, é inédita em livro.

Castelos de Vento

Anima Vagula e seus beijos agudos! Este é mais um beijo seu, Jane.

O vídeo acima traz a belíssima animação Castelos de Vento, de Tania Anaya. O mesmo amor que arrasta, desajuíza e aproxima.

Curtam o curta!

quinta-feira, março 08, 2007

Esboço

Devo amar ?
Quem?

Estou entre a paixão díspar e o recolhimento insensato
a vazão da carne num impulso solitário
a explosão do corpo - um meteoro translúcido, voraz
esse calor rompendo as fronteiras da derme
vai me levar a um rio de que coisa que eu não conheço?
O mistério malsão - tenebroso ou cicatrizante
matematicamente projetado em meus anseios
milimetricamente alojado em meu espírito encaroçado
atomicidade resvalando pela beira dos meus orifícios mais sisudos.

E caso ame?
De que modo amar?

O maior desejo é me enlaçar sem restrições
mas o afeto em demasia é sufocante
a carência mar de culpas, medos e acúmulos venerados
eu quero que o outro me engula e me sugue as nódoas da alma
se houver fuga impera o desmantelo
que desequilíbrio farto e alucinado!

Volto então à idéia primária racional de ter luz na serenidade
começo a questionar ousadias e invasões territoriais
tenho dúvidas quanto a amar mais ser amar morno
mas o fato é que não tenho mais a agonia dos primeiros ventos.

Satisfeito ou desinteressado?
Em que degeneração autoconduzida estou mergulhando?

Se me encontro não me encontro
pois o anseio é primazia.

terça-feira, março 06, 2007

Solares

O meu corpo era o Brasil. E ela era o Maranhão. E ela era como uma unha encravada. Uma unha na minha testa. Às vezes me pedia para ser uma doçura despenteada; jogava-se no chão, mole feito uma fruta podre, e dizia versos de Leminski. Versos que eu nem gostava. Ali naquela jaula de sala, nós nos ocupávamos em ser quentes, cada um a seu jeito e em seu canto. Bastava tocar um samba antigo na vitrola que algo de muito nobre podia acontecer – uma lágrima escorrer pela face branda dela ou o meu Brasil se arrepiar dos pés à cabeça.

Mas não havia palavra ou gesto que me fizesse suplantar a dor que sentia. Não se tratava de querer só pra si, mas de uma vergonha compulsiva. Uma vergonha destas que desfigura o rosto, que faz a alma ser uma concha voltada pra dentro. Eu nem sei se tínhamos mais conserto. A impressão é que não prestaríamos mais para muita coisa depois desta tragédia sem morte. Esta é a pior coisa: sobreviver a uma tragédia.

A presença de Vítor na sala era evidente. Estava no canto dos lábios dela, mudando as faixas, escolhendo as canções. No dia do nosso casamento, o sol teceu o amarelo mais pálido que eu já vi e achei que era praga dos céus. Receei que uma maldição tão fosca e sem ânimo pudesse arruinar de vez a minha vida. Eu a amava demais, mas naquele dia custei a acreditar que iríamos muito longe e tudo por causa daquele sol. Agora sei que se eu não estava certo foi porque não permiti ser convencido plenamente.

Na sala a vida continua sem brilho, mas com um colorido macio. Na ponta do sofá que fica em frente à mesinha de centro, eu coloco o meu pé e fico brincando com os próprios dedos. Ela passa com um vestido transparente, leve como o amor mais primoroso. A peça a veste bem, ressalta seus contornos de boa amante, deixa cada pedaço de coxa mais decidido. Não consigo disfarçar a minha excitação. Ela percebe que a fraqueza da minha carne quase me devolve a intrepidez de antes. Mas meu olhar não me sustenta, e ela apenas passa.

Começo a arrumar as minhas coisas. Elas vão em caixas, que são do tamanho da minha vida. Vítor, de algum ponto, deve estar olhando tudo com alegria. Ele: o prenúncio do sol. Ele que me fez chorar lágrimas que eu não tinha. E ela que resolvera deixar de me abrandar, de esculpir meus sonhos. Dois que se merecem? Dois que se acumulam e que agora insistem em entrar em minhas caixas. De relance, o espelho me revela um rosto possesso de uma fúria morta. Se quisesse matar, não teria força. Então, o que resta é permitir que a morte seja em mim uma mentira.

Pronto, tudo meu está reunido. Os quadros, os livros, o cavalete, as roupas e tudo o que ainda me pertence. Sinto não sair mais vazio porque possuo coisas que são minhas. Ela me olha com olhos subordinados ao que não se pode mais evitar. De longe, sinto a sua respiração, um último momento de ternura. Mais uma vez olho para o espelho, que parece se esconder de mim.

Pelas brechas que minha distração consente, ela arruma um jeito de se acomodar a meu lado. Eu sinto como se um doce perigo viesse tomar conta de mim. Ela chega bem perto. Me perdoa – o pedido é carinhosamente entoado. Você não errou – desafino.
Ao bater a porta, me dou conta dos pingos de chuva que caem na calçada. Tímidos pingos de chuva, que nem molham direito.

sexta-feira, março 02, 2007

Espiráculo

- Ai amor, eu me sinto tão feliz ao teu lado. Tão leve, tão livre. E por aí as pessoas vivem dizendo que é difícil amar. Sofrem, amargam a solidão, dissipam-se o tempo todo por não terem maturidade suficiente para experimentar e conviver com as ambigüidades decorrentes de um relacionamento a dois. Vincular-se não é castrar-se e nós sabemos bem disso, não é? Tampouco é fundir-se. Nós entendemos o mecanismo de simultaneamente nos unir e nos manter separados.

Eu penso em como o indivíduo se engana ao associar solidão e liberdade. No fundo não vê que não passa de uma prisão narcísica. Preferem a autocelebração a beber das delícias de compartilhar a intimidade. São Procustos centrados em si. Transformam-se em seres insuportáveis por acumularem tanto veneno. Cobranças, ciúme...

... Eu acho que o caminho é se libertar desta materialidade, deste atraso que é se fechar em um espaço apenas concreto. É preciso ser capaz de abstrair para conseguir amar, como nós fazemos tão perfeitamente. As regras são necessárias, é bem verdade, mas...

...E se apegam. Se apegar ao gasto, meu Deus!...

...A crise contemporânea: o vácuo de valores, o mito da eterna insatisfação humana, a fabricação de personalidades pré-moldadas, as projeções dessas máscaras, as válvulas de escape...

...O ser humano está diluído e irreconhecível, querendo o que não tem, frustrando-se, andando de muletas....

...Ai, ainda bem que você me entende, capta minha consciência, sabe que o amor é um convite para sair de si...

...Junta os fragmentos para preservar o sentido de totalidade...

...Evolução é isto: aperfeiçoamento calcado no respeito...

...Como se eu fosse um depósito de suas irresoluções. Homens avaros... Rui?... Rui, Rui! - exclamou Denise, sacudindo-o.

- Que foi?
- Você não ouviu nada do que eu estava falando, não é?
- Desculpe, acabei pegando no sono. Você pode repetir?
- Repetir? Nós estamos numa sorveteria. E seu sundae está derretendo.
- Há quanto tempo eu estou dormindo?
- Não sei.
- Nossa, que caos! Pelo menos ainda posso aproveitar o morango.
- Não é morango, Rui. É cereja.
Neste momento, a campainha do 901 toca e Rui, de meias, cuecas e com uma fisionomia cansada, vai atender. Flávia, exausta depois de mais um dia infernal, esquecera a chave de casa.

- Oi querido. Estou com a pele sebosa. Preciso de um banho – anunciou seu desmonte físico, beijando suavemente os lábios de Rui.

Flávia joga a bolsa no sofá, vai logo tirando a blusa e se dirigindo ao banheiro, movida pela agonia de um calor que insuportavelmente coça a pele. O banho do cansaço é sem tempo. Da sala, Rui concentra-se no barulho da água, que ora incide sobre Flávia, ora sobre o chão. Esse movimento sonoro é violento: por alterar-se sem aviso e por castigar o ouvido de forma delicada.

Rui escuta um ruído na fechadura da porta e tem a sensação de que Flávia está chegando novamente. Mas desta vez é Cláudia quem entra com um sorriso largo e repleta de embrulhos. Despeja os pacotes de qualquer jeito sobre a mesa e corre para o banheiro apertada pela urina. Já aliviada, sai rapidamente para a área de serviços e se surpreende.

- Rui, quem é esta mulher?
- Que mulher?
- Esta, que está lavando roupas no tanque enrolada em uma toalha.

Rui vai até a área de serviços. Não há nenhuma mulher aí – diz enquanto penteia o cabelo depois de ter tomado um banho demorado.

- Para aonde você vai, arrumado desse jeito e a esta hora?
- Vou buscar Alice no aeroporto.
- Alice?
- Sim Cíntia. Alice, minha companheira.

Rui olha para a bolsa que está no sofá.

- Bonita bolsa, Cíntia. Onde você comprou? – e sai para pegar o táxi que havia chamado e seguir o seu destino.

O caminho para o aeroporto é sinuoso. Não só porque Rui está distraído ou porque o taxista optou pelo percurso mais demorado. Cada ponto de luz que vem das janelas dos apartamentos confirma um incômodo ou um esquecimento. E é para esses pontos luminosos que os olhos de Rui se voltam. Enquanto isso, o taxista guia o seu veículo, curva após curva – umas mais abertas, outras mais fechadas – proporcionando ao seu passageiro um balanço e um tempo inúteis. Sim, um tempo inútil e rasteiro, embora extenso.

- Senhor, senhor. Chegamos ao aeroporto.

Rui se assusta com o modo brusco como o motorista o desperta. Ele paga a corrida e sai do táxi apressado. Faltam poucos minutos para o desembarque de Alice e o celular de Rui toca.

- Alô.
- Querido, tentei falar contigo hoje, mas não havia ninguém em casa.
- Você não vem?
- Meu vôo foi cancelado. Chego amanhã no mesmo horário.
- Sinto saudades.
- Não estou te ouvindo bem...

A bateria descarregou e a ligação caiu.

Na saída do aeroporto, Rui coloca suas malas no chão e se espreguiça um pouco. Tira a última maçã e umas barras de cereal que carregava em uma sacola e joga a sacola no lixo. Vamos, o carro está logo adiante – diz Denise. Os dois entram no carro e ela vai conduzindo.

- Estava ansiosa com a sua volta. Sabe, você viajou logo depois daquela briga estúpida que tivemos e eu fiquei dissipada, destruída. Não consigo conviver com a ameaça da desconjuntura. Por um momento, mesmo sabendo que sua viagem era breve, tive a sensação de que você iria para não mais voltar. Nós não podemos cair nesse poço sem fundo, nessa guerrilha infantil, e com isso mimetizar o que há de mais pernicioso nas relações afetivas que estamos acostumados a ver por aí... Rui, meu Deus, Rui!
- O que foi desta vez Denise?
- Você está de só de meias e cuecas. Você viajou só de meias e cuecas? O mundo está mesmo perdido! Como é que permitem alguém embarcar desse jeito? Não é possível que...

Durante todo o trajeto, Rui se concentra nas mordidas que despedaçam a maçã e vai contemplando o sol de uma manhã que se anuncia irradiante. Ele olha para aquela bola estalada no céu e se impregna com o amarelo vivo que vem dela.

- Chegamos – avisa Rui.

Ele desce do automóvel e Denise fica. Entra pelo saguão do prédio, chama o elevador, aperta o botão do nono andar. No quinto, o elevador pára e uma mulher de meia-idade entra e fita-o com estranheza. Ao abrir a porta de casa, Rui se depara com Cláudia, impaciente, andando de um canto a outro da sala, a esperá-lo.

- Rui, você está perdendo as estribeiras. Praticamente todo dia você vai para a farra, mas chegar em casa só de meias e cuecas já é demais, não acha?

Rui permanece mudo.

- Vem cá. Deixa eu te cheirar. Que hálito é este de cereja?
- Não é cereja, Cláudia. É morango.

No corredor que dá acesso ao banheiro Rui cruza com Flávia – Querido, você viu a minha bolsa? Eu tinha quase certeza que ela estava em cima do sofá...

Na área de serviço, Alice parece tranqüila enrolada na toalha e lavando roupas no tanque. Rui a observa um pouco. Ela nota a presença dele, mas o ignora completamente. Rui então volta para a sala e ouve o recado que está na secretária eletrônica.

- Rui, é Cíntia. Por que você não veio me buscar no aeroporto? Eu...

Neste momento, a campainha do 901 toca.