Pé de cana e canapé
Para ele, o que fez a diferença desta vez foi o feliz trocadilho que dá título a um dos contos e à obra. Sempre insistiu no trocadilho. Via no exercício, o gracejo enfático; nas palavras que pulam, a solene ambigüidade. E era péssimo: seu conto No Ovo de Novo, por exemplo, foi crucificado. Falava de fortes dores de amor reincidentes. Já o livro de crônicas As Avarezas do Destino tinha título sofrível porque o trocadilho, por pior que fosse, não veio. Agora, Tijanero em punho, acreditava ter se transformado, por insistência, em um mestre nessa arte de pinçar chistes, de espiolhar facécias.
A festa estava bonita. Gente de peso, críticos, escritores, mulheres elegantes e muito uísque. Odilon, a cada dose, fazia pelo menos duas ou três vezes um movimento circular com o copo para rodar o gelinho, como se assim desse mais sabor à bebida. O exército de garçons passava a toda hora, com suas generosas bandejas, suas gravatas-borboleta e seus uniformes de pingüim. Os fumantes tragavam seus cigarros importados. O mais consumido era o La Pavlova, uma homenagem à bailarina estrangeira, mais conhecida entre os latinos como “La Reina de la Danza”. Ilustrando o maço, uma pintura da dançarina vestida a caráter. Era desse que Diogo Konig, editor de Odilon, fumava. Gostava de emitir conceitos em baforadas. De vez em quando tossia, mas tinha um jeito de transformar a tosse em um salto da fala, de modo que quase não se notava o pigarro; antes, muito antes, havia ali um ritmo da inteligência.
Mas não ficava atrás o Eldorado, também tragado por muitos na festa, com ilustração de um tipo bucólico de mulher, ao lado de sua ovelha Janira, com atitude ligeiramente desleixada. Havia ainda aqueles que traçavam o Flirt. Este mostrava a mulher do vento, erguendo sua sombrinha, sensual em seu vestido de tecido fino, olhando de soslaio. E desse jeito os tabacudos - modo como são conhecidos os fumantes em Valentina, cidade sede da entrega do Tijanero – iam se divertindo a valer, entre largos goles e fumaça estrangeira.
Cicero Santoro, outrora badalado, mais por conta de seus casos com mulheres famosas que por sua literatura, era o favorito da noite. Ao ser chamado, dirigiu-se à escada que dava acesso ao tablado onde cada qual faria um breve discurso e, em um movimento um pouco além de seus limites, rasgou o fundo de suas apertadas calças. As únicas que possuía para se vestir em eventos de gabarito. O som do rasgão foi apagado pelos calorosos aplausos, apenas os ouvidos mais atentos captaram, os olhos mais maldosos avistaram e as bocas mais insaciáveis se alimentaram, depois de toda a comida, do falatório em segredo sobre a tentativa do pançudo Santoro de disfarçar seu acanhamento. Como está gordo, meu Deus! – comentava uma senhora com outra senhora enquanto mastigava as últimas tirinhas de gorgonzola.
E o Tijanero vai para: Odilon Fonseca, por Missa en Scène! O mestre de cerimônias anunciou com voz forçosamente animada. Odilon subiu no tablado, com a velocidade temerosa dos bêbados. Sem vacilar, pegou o microfone e agradeceu. “Nós somos muito pobres”, soltou o urro. Agarrou o troféu e, na escada, levou um tombo indescritível. Ele, que se diz um verme megalomaníaco, não perdeu por um segundo a compostura. Dispensou ajuda, levantou-se célere, o povo rindo. Só mesmo um verme megalomaníaco para cair tão feio e soar tão simpático.
No dia seguinte, todos os jornais noticiavam a premiação de Odilon Fonseca. Comentavam mais do tombo que do livro. Nunca um tombo alçara alguém a alturas tão elevadas. E desde então o fato estava consumado: Odilon era realmente o mestre dos trocadilhos.
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