sexta-feira, maio 16, 2008

O ato da entrega

De um modo geral, a entrega de cargos neste país está atrelada a algum escândalo, ainda que não comprovado. Políticos largam o osso porque a corrupção arromba seus postos. E não é só um cargo ou um lugar de fala o que não pode ser sustentado. A insustentabilidade, embora momentânea, de um caráter fidalgo, que sempre vestiu o aparelho estatal, é o aspecto mais positivo trazido por toda a avalanche de sujeira exposta na mídia. Se não somos capazes de mudar o rumo do país pela via do entendimento das nossas falhas históricas de caráter, então que seja por meio do bico da águia, faminta por notícias e “verdade”.

Talvez seja por esse costume de ver o ato da entrega de cargos como conseqüência da prática da corrupção que muita gente se surpreendeu com a saída da ministra Marina Silva. Como assim? Não houve nenhuma maracutaia, nenhum feito ilícito? O ato da ministra soa como ousadia por, de certa forma, quebrar uma expectativa automática. Além do mais, saiu sem antes levar um papo com o presidente, tramando a retirada na surdina, mostrando que por debaixo dos panos a dignidade também é possível. Sua decisão, repentina porque silenciosa, é fruto de um tipo de coragem que decorre do cansaço. Mas a falta de resistência para continuar em exaustivas quedas de braço é apenas aparente ou, pelo menos, não se converte em paralisia, embora a própria ministra tenha afirmado que a sua saída se deve à estagnação do governo nas questões ambientais.

Em vários momentos o cargo da ministra esteve ameaçado. Ela mesma já havia dito que se considerava uma exceção e a turma anti-Marina, os ditos desenvolvimentistas, nunca se mostrou disposta a conviver com o “desvio”. Exceção não apenas pelo que defendia. A acreana Maria Osmarina, ainda menina, “cortou seringa”, plantou roçado, caçou e pescou para ajudar o pai a sanar uma dívida com um seringalista de Belém do Pará - o patrão financiara a viagem de volta ao Acre para toda a família, que não se adaptou em terras paraenses. Alfabetizou-se apenas aos 17 anos, após se mudar para a capital, Rio Branco, em busca de curar uma hepatite que estava sendo tratada como malária. Depois da alfabetização, cursou supletivos enquanto trabalhava como doméstica, ingressou na Universidade Federal do Acre e se formou em História.

Esta brilhante exceção saiu da floresta, conviveu com Chico Mendes, liderou movimentos socioambientais e foi mais uma vez para a capital, desta vez a do país, como a mais jovem parlamentar a ocupar uma vaga no Senado Federal, derrubando ex-governadores, empresários e outros velhos caciques da política regional. Ao se tornar ministra, travou sem cessar vários embates com o governo, não só a respeito dos desmatamentos, mas em questões ligadas a produção de alimentos transgênicos, saneamento básico e outras de sua pasta.


Tamanho capital biográfico deve ser uma ofensa para quem tem cifrões tatuados na testa ou para os que respiram o ar da retórica a fim de, com todo fôlego, sustentar um discurso que não possui lastro na realidade. Marina é sincera, ética, de fala simples e inteligente, detentora de um brio admirável e outras qualidades há muito ausentes entre os políticos. Marina não é fidalga e tem o que sustentar. Ela é o acerto de caráter, maciço como a mata fechada, digno de seu ato de entrega.

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5 Comentários:

Às 8:50 PM , Anonymous Anônimo disse...

Guto, perdoe aqui, mas ficava pensando o dia que você iria escrever um texto como esse.
Não que eu não goste de acidez das suas analogias, ou do lirismo da sua prosa. Gosto. Gosto muito.
Sabe disso e por isso sempre estou aqui, mesmo quando não estou.
Mas sentia falta de um outro Guto. Do Guto jornalista que eu não conhecia. E, de uma posição política. De definições ideológicas e não partidárias.
Você pode dizer que o blog não é lugar. Talvez não seja mesmo. Mas, não tenho culpa de querer sempre
uma posição de quem prezo. Uma Mesmo que ela seja o "não sei".

Beijo.

 
Às 11:19 PM , Blogger Alex Alves disse...

Mais uma vez encontramos o consenso, dessa vez sem qualquer divergência.
Agora, bem que você poderia seguir o exemplo majestoso da biografia irretocável e da humildade da Senadora Marina me adicionando entre os seus links...
Repitamos os encontros blogueiros!
Abraço!

 
Às 10:03 AM , Blogger Guto Melo disse...

Não há o que perdoar, querida. A falta de textos como este se deve simplesmente ao fato de que, inicialmente, imaginei o Mercúrio e Luxúria dentro daquela linha que te expus naquele e-mail longuíssimo que te mandei. Lembra dele? Pois é. Como ultimamente ando com cada vez menos tempo e os poemas e contos que ando escrevendo não estou publicando aqui, então sobra espaço para outras coisas. Enfim, talvez role mais coisas desse tipo.

Beijos, muitos beijos e felicidade por aí.

 
Às 10:03 AM , Blogger Guto Melo disse...

Sim, senhor doutor. Logo, logo estará.

 
Às 4:31 AM , Blogger Camila disse...

a máquina
o sistema
o poder
o dinheiro
a falta de ética
a imoralidade política...

...tudo farinha da mesma farofa...

beijos daqui...

 

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