Foi cheio de expectativas, aberto às novas, interessado em morar na beira do rio, em viajar de jipe pelos cantos de um outro mundo de sorrisos livres e determinados. Gua-í-ba, soletrava com o mesmo prazer com que arrotava após comer um macarrão com salsicha improvisado. Era por conta do salário curto - não ganhava mal, mas tinha muitos gastos - que fazia esses preparos às pressas, repentinos, mas que nem por isso deixavam de ser planejados. Afinal, ali pelos últimos cinco dias de cada mês, sentia espezinhá-lo o golpe financeiro dado pelo governo. A bolsa foi cortada! – Isso, assim, dito três meses depois de ter sido o primeiro colocado na seleção de doutorado. Sem a bolsa, os planos foram para a cucuia.
Trouxera sua Land Rover, modelo antigo, seu único luxo. Com ela, pensava em se meter pela Patagônia e outros sítios argentinos e chilenos. Dois países amáveis, belos, e beleza era a mola de sua vida, nem sempre iluminada, mas tampouco corrompida por tragédias. Estava sim, instigado a dar o salto grande, menos nos livros e mais

nas andanças, a flertar com as sublimes formas do gelo, admirar-se com a elegância de um pato selvagem, encantar-se com a pelagem curta dos guanacos. Torraria todo o dinheiro de sua bolsa nessas aventuras que, por serem amenas, favorecem uma dedicação mais enfeitada. Estaria pronto para respirar todos os contrastes entre as montanhas gélidas e os desertos. Obviamente, observaria os olhares, pequenos gestos e toda e qualquer fagulha de humanidade. Gente, gente, toda a boa gente, acreditava, sentiria o ímã de seu embevecimento, a sua ferradura a comunicar as boas-vindas. Sim, pois ele também era um lugar e queria ser descoberto e habitado.
Conseguiu alugar um pequeno apartamento, às margens da Goethe, no meio da feiúra cinza e dos ruídos grossos. Terminado o primeiro semestre, voltou para Olinda em seu jipe, mais de quatro mil quilômetros de estrada. Apreciava, alegre, a mudança de cor e espírito à medida que ia subindo o país rumo ao seu torrão. Aqui em Porto Alegre, meu amigo, não há samba e onde não há samba não há amor – dizia com a autoridade de quem se veste da mais recente desilusão. Mas, quando passei por Minas, parei em um posto de gasolina para abastecer, tomar um cafezinho, e todos sorriam para mim. Fui alimentado pela inclinação casual que reúne as pessoas, pela afeição reta, que não se desvia, a gentileza de estranhos que identificam facilmente a fraternidade impagável do instante e nos aliviam dos abismos da convivência.
Retornava para sua chácara, em volta o cheiro do verde e do barro, a companhia do cão miúdo e de latido forte. Algumas visitas de amigos, regadas a álcool, maconha e conversa fiada, um pouco de fé na vida se deitava por ali, vento e recarga de mãos dadas cantavam uma nova composição. Era preciso banhar-se em todas as fontes, porque em poucos dias seria novamente seqüestrado por um cotidiano insosso e pelo compromisso com tudo o que não acreditava. Estaria lá, às margens da Goethe, onde uma poltrona velha no canto da sala o serviria par

a descanso das costas doloridas. A cada degrau de escada que subisse até o quarto andar, já que no prédio não havia elevador, pisaria na estreiteza, no aperto, na limitação de espaço. Entraria em casa sem limpar os pés sujos de desgosto, embora a alma tivesse se coberto de energia para mais seis meses. O cão, seu grande companheiro, regressaria ao mosteiro do padre Cardoso, um amigo da época da comunhão. Às margens da Goethe, na ausência do cão, criou laços afetivos com a poltrona. Batizou-a Nina, comprou adornos para ela, por vezes chegava a acariciá-la.
Eu nunca tive ilusões quanto à academia – ele apregoava. Jamais entendeu o porquê de a universidade ser vista como um lugar de distinção. Parecia, isso sim, algo desgastado, sem magia ou glória. Uma profunda caverna, com intelectuais brincantes de RPG, uns sacavam uma espada de Gramsci, outros se defendiam com um escudo de Bourdieu e assim por diante. Nada tinha doçura comparável a, por exemplo, um tambor de crioula solto em um quintal qualquer para a dança, o riso e a embriaguez de nobres mestiços. Nenhuma firula acadêmica esquentava o peito do homem que conhecera Severo, um ex-rico que tostou dinheiro em excessos de toda ordem. Ali nasceu uma sincera amizade, como nascem o sol e as feridas.
Severo um dia escreveu: “a maior parte dos homens de ação é imbecil”. Um leve sorriso abria o córrego da memória. O telefone tocava e, do outro lado da linha, Severo dizia estar roendo as paredes e perguntava: “posso ir para sua chácara?” As noites cubanas no Alto do Céu, com Jaci, que tão bem lavava a sua roupa e fazia o seu café, rumbas e merengues sacudindo os esqueletos dos velhos, traficantes vendendo pó para os mais moços, todos convivendo harmoniosamente, um tiro não se escutava. Tinha esses deleites sentado em Nina e ali, em seu encosto, ia adormecendo, o sono aquietando as lembranças. O dia seguinte esperava o futuro doutor, responsável, a cumprir seus créditos. Comeria algo como um pão com ovo no café da manhã, antes de sair daria um beijo em Nina e partiria para uma aula sem patagônias, estranhos cúmplices ou severos poetas. Desceria os quatro andares de escada, daria de cara com a Goethe movimentada de sempre. Seu coração bateria esnobe.
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