quinta-feira, novembro 01, 2007

Às margens da Goethe

Foi cheio de expectativas, aberto às novas, interessado em morar na beira do rio, em viajar de jipe pelos cantos de um outro mundo de sorrisos livres e determinados. Gua-í-ba, soletrava com o mesmo prazer com que arrotava após comer um macarrão com salsicha improvisado. Era por conta do salário curto - não ganhava mal, mas tinha muitos gastos - que fazia esses preparos às pressas, repentinos, mas que nem por isso deixavam de ser planejados. Afinal, ali pelos últimos cinco dias de cada mês, sentia espezinhá-lo o golpe financeiro dado pelo governo. A bolsa foi cortada! – Isso, assim, dito três meses depois de ter sido o primeiro colocado na seleção de doutorado. Sem a bolsa, os planos foram para a cucuia.

Trouxera sua Land Rover, modelo antigo, seu único luxo. Com ela, pensava em se meter pela Patagônia e outros sítios argentinos e chilenos. Dois países amáveis, belos, e beleza era a mola de sua vida, nem sempre iluminada, mas tampouco corrompida por tragédias. Estava sim, instigado a dar o salto grande, menos nos livros e mais nas andanças, a flertar com as sublimes formas do gelo, admirar-se com a elegância de um pato selvagem, encantar-se com a pelagem curta dos guanacos. Torraria todo o dinheiro de sua bolsa nessas aventuras que, por serem amenas, favorecem uma dedicação mais enfeitada. Estaria pronto para respirar todos os contrastes entre as montanhas gélidas e os desertos. Obviamente, observaria os olhares, pequenos gestos e toda e qualquer fagulha de humanidade. Gente, gente, toda a boa gente, acreditava, sentiria o ímã de seu embevecimento, a sua ferradura a comunicar as boas-vindas. Sim, pois ele também era um lugar e queria ser descoberto e habitado.

Conseguiu alugar um pequeno apartamento, às margens da Goethe, no meio da feiúra cinza e dos ruídos grossos. Terminado o primeiro semestre, voltou para Olinda em seu jipe, mais de quatro mil quilômetros de estrada. Apreciava, alegre, a mudança de cor e espírito à medida que ia subindo o país rumo ao seu torrão. Aqui em Porto Alegre, meu amigo, não há samba e onde não há samba não há amor – dizia com a autoridade de quem se veste da mais recente desilusão. Mas, quando passei por Minas, parei em um posto de gasolina para abastecer, tomar um cafezinho, e todos sorriam para mim. Fui alimentado pela inclinação casual que reúne as pessoas, pela afeição reta, que não se desvia, a gentileza de estranhos que identificam facilmente a fraternidade impagável do instante e nos aliviam dos abismos da convivência.

Retornava para sua chácara, em volta o cheiro do verde e do barro, a companhia do cão miúdo e de latido forte. Algumas visitas de amigos, regadas a álcool, maconha e conversa fiada, um pouco de fé na vida se deitava por ali, vento e recarga de mãos dadas cantavam uma nova composição. Era preciso banhar-se em todas as fontes, porque em poucos dias seria novamente seqüestrado por um cotidiano insosso e pelo compromisso com tudo o que não acreditava. Estaria lá, às margens da Goethe, onde uma poltrona velha no canto da sala o serviria para descanso das costas doloridas. A cada degrau de escada que subisse até o quarto andar, já que no prédio não havia elevador, pisaria na estreiteza, no aperto, na limitação de espaço. Entraria em casa sem limpar os pés sujos de desgosto, embora a alma tivesse se coberto de energia para mais seis meses. O cão, seu grande companheiro, regressaria ao mosteiro do padre Cardoso, um amigo da época da comunhão. Às margens da Goethe, na ausência do cão, criou laços afetivos com a poltrona. Batizou-a Nina, comprou adornos para ela, por vezes chegava a acariciá-la.

Eu nunca tive ilusões quanto à academia – ele apregoava. Jamais entendeu o porquê de a universidade ser vista como um lugar de distinção. Parecia, isso sim, algo desgastado, sem magia ou glória. Uma profunda caverna, com intelectuais brincantes de RPG, uns sacavam uma espada de Gramsci, outros se defendiam com um escudo de Bourdieu e assim por diante. Nada tinha doçura comparável a, por exemplo, um tambor de crioula solto em um quintal qualquer para a dança, o riso e a embriaguez de nobres mestiços. Nenhuma firula acadêmica esquentava o peito do homem que conhecera Severo, um ex-rico que tostou dinheiro em excessos de toda ordem. Ali nasceu uma sincera amizade, como nascem o sol e as feridas.

Severo um dia escreveu: “a maior parte dos homens de ação é imbecil”. Um leve sorriso abria o córrego da memória. O telefone tocava e, do outro lado da linha, Severo dizia estar roendo as paredes e perguntava: “posso ir para sua chácara?” As noites cubanas no Alto do Céu, com Jaci, que tão bem lavava a sua roupa e fazia o seu café, rumbas e merengues sacudindo os esqueletos dos velhos, traficantes vendendo pó para os mais moços, todos convivendo harmoniosamente, um tiro não se escutava. Tinha esses deleites sentado em Nina e ali, em seu encosto, ia adormecendo, o sono aquietando as lembranças. O dia seguinte esperava o futuro doutor, responsável, a cumprir seus créditos. Comeria algo como um pão com ovo no café da manhã, antes de sair daria um beijo em Nina e partiria para uma aula sem patagônias, estranhos cúmplices ou severos poetas. Desceria os quatro andares de escada, daria de cara com a Goethe movimentada de sempre. Seu coração bateria esnobe.

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8 Comentários:

Às 11:28 PM , Blogger La Maya disse...

Olá moço!
Não levo seu comentário a mal de forma alguma Guto! O que me interessou no único capítulo que li de "O Espaço Crítico" foram as QUESTÕES que ele levanta, não as teses que ele defende. Eu mesma, enquanto lia, ia grifando certas linhas e abrindo parênteses do tipo "haveria o risco de um declínio da importância da 'ótica geométrica' (o espaço como o conhecemos) em detrimento de tudo o que nos é apresentado através dos píxels de uma imagem televisionada???" ou "a evolução das técnicas acarreta uma involução da arte????", coisas das quais discordo plena e sonoramente. Talvez não tenha deixado isso claro no texto, minha preocupação foi ressaltar as questões que somos levados a discutir, quer concordemos ou discordemos do autor (e pelo que li é enorme o número de leitores que discordam das idéias de Virilio). E, afinal, embora eu não acredite que nos transformaremos algum dia numa sociedade "Matrix", completamente alienada e desmemoriada, reconheço que a velocidade do avanço das tecnologias em comparação com outras ciências (ética e moral aqui incluídas) trazem certos problemas aos quais alguns talvez não estejam atentos. Acho muito válido esse tipo de questionamento a curto, médio, longo prazo, da forma como for. Eu, por exemplo, percebo com certa amargura que grande parte das minhas alunas de dança têm dificuldade de concentração, irritam-se facilmente e simplesmente não conseguem parar quietas. São alunas de três a dezesseis/dezessete anos de idade. A geração tevê e computador.
Ou seja, avanço tecnológico não é só praticidade e rapidez nas pesquisas, acesso a milhares de informações e culturas (o que acho excelente!), mas também nos faz perder um pouco as raízes, a calma tão necessária à formação de opiniões e uma certa anestesia que nasce a partir da exposição indiscriminada a milhares de estímulos vindos de tantas direções.
Bem, faço até questão de ler o restante desta e de outras obras de Paul Virilio _ então serei capaz de dizer se gosto ou não, se concordo ou não. Por hora, digo que as questões que ele levanta no texto despertaram intensamente a minha atenção. Daí o trabalho de oito folhas...!!
E é exatamente isso que me interessa aqui: a discussão de pontos de vista. Realmente adorei essa lenha que você jogou no 'fogo'!
Ah, e este texto não é o que fiz pra faculdade... é o princípio de alguma coisa que pretendo terminar esta semana e levar pra um grupo de discussão e estudo de arte contemporânea (sobretudo dança) de que faço parte _ e acho que as questões levantadas aqui têm muito a ver com nosso trabalho!
Beijos e um excelente fim de semana!

 
Às 11:48 PM , Blogger La Maya disse...

Ah, e seus textos, como sempre, ótimos.

"...ele também era um lugar e queria ser descoberto e habitado."

"...compromisso com tudo o que não acreditava."

Sempre vejo meu reflexo em algum pedacinho deles...
Diga: já publicou alguma coisa?

Beijos!

 
Às 6:48 AM , Anonymous Anônimo disse...

Ah idealismos a parte.... morar de frente pro Guaíba e ver o pôr do sol lá todo dia, deve ser tudilindo.

beijos guto querido

 
Às 2:25 PM , Blogger Garota Enxaqueca disse...

Estranho como por vezes temos que deixar de lado tudo em que acreditamos, correndo atrás do que não queremos simplesmente porque é isso que nos garante continuar sermos quem somos...

 
Às 6:55 PM , Blogger Unknown disse...

Oi Guto. Li, reli e gostei. Grande abraço e bom domingo.

 
Às 3:53 AM , Blogger Guto Melo disse...

Oi Lúcia, parte do que escrevo publico no blog. Existem outros textos em revistas eletrônicas como a Corsário e a Malagueta e uma publicação coletiva, fruto de uma premiação em um concurso literário chamado Helena Kolody.

 
Às 11:56 AM , Blogger By Ana D disse...

Talentosissimo...Li com interesse e prazer !

 
Às 4:17 PM , Blogger . fina flor . disse...

onde não há samba não há amor é um ótimo tema para um samba..... rs*

beijos, querido e boa semana

MM.

ps: consertei o problema do link lá no canteiro :o)

 

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