Flecha de cheiro
Quando se moveu para o centro, ponto em que sempre depositou descrença irrestrita, queria formar as bases elásticas de sua grande aventura. Espalhar-se feito gás pelo mundo, com aparência de espuma, a partir das coisas mais genuínas e mais espúrias que o constituíssem. Ou então, em outro formato, algo como um sorvete de lepra, e ver em cada língua infectada a semente do contágio pela palavra.
Jamais pensara em permanecer agarrado ao que fosse proteção. Viu o reboco cair, seus nervos sumirem por entre as vértebras para a ciática desmentir a sua perna. Era a esquerda, que vibrava um acorde fino de dor lá na sola do pé. Nessa hora inventou de ser cigano e, como sempre viu as coisas ao revés, em vez de ler mão, leu pé, embora o pé não seja o avesso da mão.
Viu nas linhas do pé que o seu pulmão era atlético, que os ares ali eram transformados, viravam aromas, e o corpo assumia a forma de uma flecha de cheiro. O arqueiro nu apontava para o horizonte e disparava suas intenções, sem o encargo de acertar um alvo. O importante era o corpo-flecha-de-cheiro encontrar narinas, quais fossem, que suportassem ser penetradas com toda violência e não sangrassem. Quando isso acontecesse, estaria nos braços espertos da admissão mais encantadora.
Foi para essas coisas que cogitou segurança. Para que depois de se arrebitar, não pudesse cair assim fácil. E, como ainda não aprendeu a sentir que ser livre é o suficiente, buscou o poder para facilitar as coisas. Mas se atrapalhou todo porque - apesar de saber como ninguém escolher, expressar e defender o que gosta - perdeu a fé na persuasão. Optou, voluntariamente, por não querer convencer mais ninguém de coisa alguma. Então, a cada embate se manifestava a preguiça como um direito recém-conquistado e era justamente isso o que deveria nutrir e preservar agora.
Entretanto, vê também o perigo de ser preguiçoso depois de ter se movido para o centro e ainda não ter se tornado gás. Em momentos de desespero, clama pela aventura. Como resposta, o destino lhe apresenta passeios de barco, por um lago não tão fundo, com coletes salva-vidas. Ou ainda, um vôo curtíssimo para uma cidade vizinha que parece tanto com o lugar onde mora. Talvez seja melhor esquecer tudo e começar tudo novamente.
Marcadores: Camada fina de metal sobre o espelho
9 Comentários:
Encontrar Kapoor entre seus escritos é um prazer. Instigantes poemas, links interessantes. Me perco a tarde toda nessa prosa e não sair para lugar nenhum.
Olá
Obrigado pela sua visita. Não conhecia o teu blog, vou passsar a visitar também.
Até breve
Márcio, muito agradecido. Kapoor é realmente lindo e tocante. É um prazer tê-lo por aqui.
Às vezes, é realemtne melhor esquecer tudo e coeçar de novo. Belíssimo o teu texto!
Obrigado pela visita e pelo comentário sobre as Musas. também prefiro as companheiras, que sempre nos encantam...
Aqueles que defendem relacionamentos amorosos duradouros e brilhantes são esmagados pelas estatísticas.
Mas, sinceramente, depois de casar (*) cinco ou seis vezes, eu AINDA as considero MUSAS.
Todas elas!
Espero que este também seja o teu caso.
Mas a Vida não é assim...
Abraços, flores, estrelas!
(*) casamento de artista: sem papel.
Edson,
acho que, quando o assunto é relacionamento, não há o que defender. Não casei tantas vezes, estou no meu segundo, ambos realizados conforme a indicação do asterisco: sem papel, juntando os panos de bunda e, na medida do possível, os sonhos. Quanto a elas, se são musas ou não, pouco importa. Em minha vida, além de companheiras, elas se fizeram música, fêmeas de metal sonoro, isso sim.
Perigoso é viver.
Engraçado é que lançamos flechas de veneno em nosso próprio peito e ainda assim, insistimos em querer que a vida seja infinita.
A todo custo.
E se somos fecundados pela descrença, mais inflamáveis nos tornamos.
Isso faz com que, de certa forma, espalhemos nosso gás largamente pelas narinas do mundo. Em todas as direções.
A questão é que poucos tendem a inspirá-lo. E a vida expira aos poucos.
Às vezes eu penso em zerar tudo e começar de novo. Mas como? O meu cronômetro sempre começa no que eu fui ontem...
Cara... Seu texto está irretocável. Que maestria que tens com as palavras, hein ?
Perfeito.
Abração
Ele esqueceu o poder infectante das palavras........mas tu não!
Em ti esse poder é explícito.
Perfeito.
Fê,
assim eu vou fazer igual à Ro e te chamar de exagerada. Beijos doces.
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