O diário dos homens obsoletos – parte 1
Desde pequeno, eu acredito no amor. Quando criança era mais fácil. Eu tinha um monte de amiguinhos, uma bola dente de leite, um campo de cascalho e serragem no fim da rua, pais que me amavam. A minha primeira diva foi a sombra de uma mangueira que ficava atrás do campo. Um dia olhei para ela e me pareceu uma linda mulher, deitada de lado, com as pernas semi-encolhidas e uma das mãos levemente repousada sobre o chão. Pronto, isso era o amor: futebol, fantasia e pessoas queridas ao redor.
Lá pelos dez anos, dispersava nas aulas chatas no colégio para formular urdiduras, vadiar a mente. Então, imaginava uma classe lotada de belas garotas, todas nuas, anotando com a ponta do lápis as lições de matemática que o professor ranzinza nos ensinava. No caderno delas, em vez de equações algébricas, a grafite rabiscava: como a sua cor é formosa. O ritmo das anotações ia crescendo até acontecer uma sonora explosão. O professor perguntava que barulho era aquele e logo após a pergunta todas apareciam vestidas novamente.
Hoje continuo acreditando no amor como a coisa mais importante da minha vida, apesar dos tropeços. E vou vivendo assim, à procura de um olhar ao mesmo tempo sereno e desvairado, gestos acolhedores e ímpetos sinceros. Mas hoje é muito mais difícil. De minha parte porque nunca aprendi nesta vida a ser só, embora seja, mesmo estando com alguém. O que isso gera de trapalhada não está no gibi. Como não sou único nessa história, há de se considerar as outras estradas que se cruzam com a minha.
Ela chega – uma dessas estradas, macia feito bolo da vovó, clandestina de si mesma, anunciando os fracassos do passado e chamando um futuro mais brilhante. Gosta de afetos sem gorduras, de temperos finos, seu corpo é um stradivarius. Viveu de esquecer e se refazer. Hoje adora plantas e tem enterros não cumpridos. Tenho medo de ser mais um morto sem caixão, um adorno para a sua memória perneta. Como amar alguém assim? Logo eu, que ainda não aprendi a ser só.
*imagem
Mulher Deitada - Hilda Campofiorito
Marcadores: Histórias e invenções
11 Comentários:
minhanossinhora.... dá prá desacreditar em amor desse jeito?
beijos
Guto, diga que mulher não gostaria de ser descrita assim?
Mostre pra ela e certamente você vai ser amado por uma mulher assim, ainda que não tenha aprendido a ser só, ainda que qualquer coisa.
Música de novo no texto.
E é isso. E pronto.
Belas imagens, Guto. Costumo dirigir e, aproveitando os engarrafamentos, observar os troncos das árvores de Salvador.
Encontro tantas semelhanças com seres humanos.
Obrigada pela visita ao Brisa. Volte quando quiser e um abraço.
Posso colocar atalho do seu blog no Brisa?
ô Silvia, não precisa nem pedir, né? E obrigado por gostar daqui.
Nossa.
Não sei se escrevo sobre a idéia (linda) do texto ou sobre a última frase dele. Poxa, que entrou em mim, essa frase toda: "logo eu, que ainda não aprendi a ser só."
É difícil encontrar homens que (d)escrevam o amor. Mais ainda, homens que explanem o amor assim, de um jeito tão bonito - e sincero. Puxa...
Letrar é fascinante. Mais ainda, encontrar o tal do amor. :)
Lá em Niterói tem uma galeria com o nome da Hilda Campofiorito. Fica no Centro Cultural Pachoal Carlos Magno.
Assim como você eu também tenho o amor como algo principal em minha vida.
Abração
Quem acredita no amor, acredita nas coisas mais belas do mundo.
"Eu preciso aprender a ser só, reagir, e ouvir, o coração respondeeeeeer, eu preciso aprender a só ser...". Já dizia Lupicínio.
Abs.
como não amar alguém assim?
solidão é uma experiência errante. da qual estamos sempre em ponto de partida. abraço!
Dá pra acreditar em amor desse jeito, sim! Absolutamente possível e provável.
Por isso que não deixe de passear por aqui... teu blog é um dos que gosto de verdade!
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