quarta-feira, agosto 29, 2007

O retorno de Flora

Feliciano sempre gostou de jogar. E isso ele puxou do avô, craque em carteados, dominó, purrinha e outros malabarismos. O velho também sempre fazia uma “fezinha” na loteria e chegou a ganhar duas vezes o terno na quina. A grana não foi lá grande coisa, mas o prêmio besta estimulou-o a continuar a incessante busca por vacas mais gordas.

Gostar de jogar implica levar o jogo a sério. Feliciano é um quando está dentro e outro quando está fora do jogo. Em confronto, grita, xinga, bate, enrubesce, revigora a saúde. Tudo isso se divertindo. Dona Flora, mulher de Feliciano, dia desses reclamou com o marido, que chegou com uma galinha fedorenta em casa. O adversário não tinha mais o que apostar, então Aziz, a galinha, dançou.

- Qualquer dia desses é você que está perdendo até as calças.
- Que é isso Flora? Prepara ela para o rango de amanhã.
- Eu que não vou comer esse treco fedido.
- Fedido que é bom – Feliciano ria um riso safado.

Um dia Feliciano acamou de virose, para o prazer de Flora. Só assim ele não se metia em jogatina. Serena e aliviada, a mulher foi ao açougue comprar carne moída para fazer um ensopadinho. Passou também na farmácia na tentativa de encontrar alguns remédios que o médico receitara ao marido.

Feliciano aproveitou a ausência da esposa, levantou-se e foi para o seu destino de sempre. Mais doente ficava de não poder praticar seus truques, aplicar as técnicas e artimanhas que ninguém sabia tão bem quanto ele. Mas, com a saúde debilitada, não podia fazer como de costume. Cada lance era acompanhado do estranho silêncio de quem se acostumara a vencer aos berros e a socar a mesa com seu grosso anel de prata.

Feliciano foi, então, perdendo todas as partidas de dominó e deitava as pedras sobre a bancada com moleza cada vez maior. Depois de ter perdido todo o dinheiro, com o corpo febril e sem forças, lembrou da praga da mulher e decidiu fazer um pacto consigo mesmo: apostaria as próprias calças. Caso ganhasse a rodada iria até o final, para recuperar tudo o que perdera; e caso saísse derrotado, voltaria para casa e nunca mais jogaria.

A rodada começou quente, até porque jamais os companheiros viram Feliciano naquele estado tão abatido. Logo de cara, levou o primeiro passe e no final mais um. Todos os adversários riam, mergulhados em uma felicidade monstruosa. Cumprindo com o próprio trato, Feliciano voltou para casa só de cuecas.

- Onde foi que você se meteu traste?
- Perdi as calças no jogo.

Engolindo a seco o próprio pranto, Flora trancou-se no quarto e o marido dormiu no sofá. No dia seguinte, ao acordar, a casa estava deserta. Na porta da geladeira, o bilhete: adeus, me esqueça! Flora partiu sem dizer para onde e levou Júlia, a filha, com ela.
Feliciano abriu a geladeira. Pelando de febre, pegou o ensopadinho que a mulher havia feito com tanto capricho e comeu sem sequer esquentá-lo. Uma lágrima se pronunciou, mas foi contida pela esperança de que, passada a raiva, a amada voltaria. Se ao menos ele soubesse onde Flora estava, poderia procurá-la para dizer que ela ganhou a grande aposta, que por ter perdido as calças nunca mais voltaria a se enfiar em jogatina.

Duas semanas se passaram e nenhuma notícia, sinal, rastro, nada que acalmasse o coração desse rei que perdeu a majestade. Feliciano se recuperou da virose com alguma dificuldade, pois a tristeza e a falta de alguém em casa que cuidasse dele retardou a sua cura. Preparava-se para sair e tomar um pouco de sol quando ouviu alguém bater à porta. Era Néscio, aflito com os comentários que todos da rua faziam.

- Feliciano, tu não sabe o que aconteceu.
- Que foi Néscio, que cara é essa?
- O Edinho morreu, bicho.
- O Edinho morreu! De quê?
- Sei lá, o médico disse que foi de uma dessas viroses brabas e tá todo mundo dizendo que foi tu quem passou a virose pra ele no dia em que ele te fez perder até as calças. O povo inteirinho comenta que foi o teu último golpe.
- Besteira.
- O fato é que os irmãos do Edinho querem te matar. Falaram que morte se paga com morte. Se eu fosse tu, picava a mula daqui.

Néscio, apesar da sensação do dever cumprido, deixou a casa do amigo um tanto apavorado. Poucos minutos depois, Feliciano ouviu novamente alguém batendo à porta. Da janela de um dos quartos, era possível ver quem. Foi atender Júlia, coração acelerado, pele suando de arrependimento.

- Cadê Flora?
- A mãe mandou eu vir aqui e dizer que ela só volta se você prometer que nunca mais vai se meter em jogo.

Feliciano beijou a testa da filha, olhou bem no fundo de seus olhos castanhos e graciosos, arriscou a última cartada.

- Então diga à sua mãe que ela pode voltar e que vamos viver juntos o resto da vida.

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10 Comentários:

Às 4:36 PM , Anonymous Anônimo disse...

ai.. que lindo, Guto!!!

Amor é amor, né? e viva ele.

beijo

 
Às 6:25 AM , Blogger Lidiane disse...

Guto, e eu aqui pensando... como esperar de você um final feliz?
Melhor não!

Sorte no amor ou sorte no jogo.
E, novamente, a vida segue. Ou segue até que Feliciano, num surto de infelicidade do destino, morra por uma calça, uma promessa e por um amor.

 
Às 6:25 AM , Blogger Lidiane disse...

Ah! Esqueci: beijinho.

 
Às 6:27 AM , Blogger Lidiane disse...

P.S.2. Afe! Eu de novo. Esqueci (pra variar) de dizer que o galo me lembrou "Ninguém escreve ao coronel", do Gabo (que eu amo).

:*

 
Às 9:50 AM , Anonymous Anônimo disse...

rss.. muito bom!!!

 
Às 10:39 AM , Anonymous Anônimo disse...

Fiquei com a sensação que tem próximo capítulo e nada feliz...sei lá, impressão só.
Mas gostei de saber que acredita no amor, eu acredito,rss
lindo domingo
beijos

 
Às 2:57 PM , Anonymous Anônimo disse...

e ela acreditou? acho q sim, né?


/(,")\\
./_\\. Beijossssssssss
_| |_.................

 
Às 5:11 AM , Blogger Jana disse...

Belo conto... deu a sensação que continua...

Beijos

 
Às 5:54 AM , Blogger Aju disse...

Muito bom cara mto bom mesmo...

E eu gostei do nome "feliciano" hahahahahahhaa

Abraços :)

 
Às 6:46 AM , Blogger Daniele C. disse...

É um conto de se mergulhar dentro..
E no final a gente se afoga na incerteza.

 

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