O diário dos homens obsoletos – parte 3
Ah, enfim a carta. Há quanto tempo não nos vemos, há quanto tempo... Caio abre o envelope, mãos suadas de ansiedade. Antes atenta para o desenho, as letras formosas, a tinta firme sobre o papel. Tem um cheiro suave que contradiz a distância dos últimos tempos. Exala Glória! Exala desta carta a nossa insanidade, as mandíbulas eretas da embriaguez. Sim, minha companheira, joga-me no olho da tua cuca, que vive a beliscar os segundos cristalinos. Afoga a saudade a me maltratar feito sede no deserto.
Foram dois anos de espera, alguns breves telefonemas, horas e horas de Messenger. Glória reclamava do frio na Alemanha; Caio da falta de dinheiro no Brasil. Se tivesse muito, estaria lá, visitando-a, esfregando-se, enfiando a cara na neve, inéditos saracoteios. Mas sua raquítica carteira mal permitia comprar uma paçoca na barraca de doce da esquina. Enfim, tinha mesmo de se contentar com a lonjura, que só se fazia perto quando, íntimo de si, tocava-se quase à beira do abuso.
Uma vez, em pleno almoço com os colegas de trabalho, cada qual com sua marmita, sentiu o corpo chamando Glória. Correu para um canto qualquer, o volume grosso da calça, a mão apertando a ponta do bicho. Foi pra detrás de um carvalho, fingiu descanso e despejou sementes viscosas ao pé do tronco. Voltou mole, para dar fim à comida, a gente toda perguntando o que Glória foi fazer na Alemanha e Caio sem saber explicar necas nem canecas.
Depois de inflamado o peito, Caio lê as palavras de Glória: “Querido, não consigo mais suportar essa dor, não posso continuar escondendo de ti, que tanto me ama, a grave falta que cometi. Ofereceram a mim uma proposta impossível de recusa. Um alemão, cheio da nota, parou demais na minha e me pediu pra ele. O sustento vai me dar paga inclusive do fato de ele ser feio, barrigudo e ter mau hálito. Você precisa ver a casa do Dürer, do jeito que sempre sonhamos, mas nunca, nunquinha, iríamos ter.
Por isso, estou te largando. Peço-te perdão por ter te feito trouxa, mais uma vez. Também não te convido para a festa de casamento porque seria humilhar-te demais. Quero que saibas que fui feliz contigo, mas tu não me mereces, pois, no fundo, sou uma ordinária”.
Glória despedia-se com um beijo “encharcado de culpa”. Estranhamente, Caio não esboçou uma reação sequer, embora sua face fosse rocha. No dia seguinte, pegou a carta, foi ao carvalho das sementes viscosas. Tinha marcado a árvore, a prego, com o desenho dos corpos, os nomes dos bois e duas bandas de coração. Foi ali que rasgou a carta e chorou.
Marcadores: Histórias e invenções
7 Comentários:
:ó( ai, que dor.
Pobrezinho de Caio.
Beijo. Ótima quinta
Bom dia, muito bom teu blog, legal o texto seu que está lá na MAlagueta, eu tb dei uma colaborada hehehe de uma ulhada no meu blog. www,moviemento.blogspot.com
Não, não chores mais.
de porra e de lágrimas, carvalho do caralho! lindo demais, bjo
Cara, que lindo. Sofrido, triste, mas belo. Eu já tinha vindo aqui algumas vezes através do blog da Ro. Vc é muito bom moço.
bj.
Valeu Fernanda!
Olá, Guto Melo!
Há alguns dias estou para escrever aqui. Muito bons seus textos e sua página. Acompanho O diário dos homens obsoletios e em alguns momentos é como uma descrição de minhas impressões de vida: a sombra da mangueira na infância, a bola dente de leite, o Boteco do Zé Amâncio (este último, para mim, é o Bar do Jiló...rs)...
Já está entre os meus favoritos... ganhou mais um freqüentador.
Ah, gostei bastante do texto na Malagueta! Somos Nascimento, Mudubim ou os dois?...rs
É isso aí. Aproveito para agradecer o comentário em minha página... Vamos trocando figurinhas literárias...
Grande abraço,
Gustavo.
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