quarta-feira, setembro 26, 2007

Os minutos e as honras

Amanhã haverá audiência e ele esqueceu a gravata. Deu conta quando chegou ao hotel, ao abrir a mala. Acordaria no dia seguinte ativado pela incumbência de antes passar em uma loja para comprar uma. Fazer o seu trabalho desviando-se das formalidades, por mais bestas que sejam, assegura no mínimo olhares de reprovação, caras e bocas de muita coisa por nada, pois neste meio de políticos, empresários, promotores e toda sorte de gente que acusa para ganhar dinheiro... neste meio o nada é muita coisa. Não queria ser cúmplice nesse tipo de vigilância. Melhor seria gastar alguns trocados, mesmo correndo o risco de se atrasar, o que também não seria bom.

À noite, na prévia do sono, conjeturas sobre a manhã que já nascia tensa antes mesmo de o sol dar as suas primeiras fisgadas. E se o comércio abrir tarde? Houver engarrafamento? Só tiver gravatas feias, que não combinem?... Caso o sumo da incompetência se infiltre de tal modo que não consiga comprar a bendita, o que dirá aos pares? Inventará que sua bagagem foi violada? Que o garçom do hotel derramou café em sua roupa (trazia duas blusas consigo, mas não duas gravatas)?

Não perdeu o sono por isso. Tinha poucas horas para repouso, mas o tempo pareceu correr lento, o que foi tomado por ele como um bom vetor de ajuda. Daria tudo certo. Acordou cedo, tomou um banho demorado e um café robusto, boas condutas para enfrentar mais um dia de calor e retórica. Saiu em busca da tal gravata e teria de resolver tudo em mais ou menos dez minutos, senão entraria no corrimão do atraso. O retardamento poderia ser justificado, talvez não a contento, pelo fato de não conhecer bem a cidade. Alguns ignorariam, outros tacitamente imputariam a ele a culpa por não ter se acautelado. Fosse o que fosse, seria menos embaraçoso que estar sem aquela língua pendurada no pescoço.

Informou-se na recepção do hotel que havia uma loja de roupas masculinas a poucos metros dali. Foi para lá faltando ainda vinte minutos para o horário em que ela costumava ser aberta. Foram chegando os funcionários menos importantes, que não tinham a chave para abrir o estabelecimento e trancar a aflição do cliente. Logo chega o gerente, conversa um pouco com todos, e inicia o dia. Sobe a porta, a compra é rápida, o dinheiro retirado da carteira sem cerimônia. Está perto do local da audiência. Só precisa agora de um táxi e mais cinco minutos.

No auditório, tudo vai sendo montado para o espetáculo em que uns atuam explorando o desalento dos mais pobres, outros imersos em suas crenças mais profundas e inúteis. Há ainda aqueles que buscam exercer influência com uma real contribuição, mas colhem apenas silêncio e descaso. Deu no jornal, um parlamentar com a face estourando de mentira vermelha hasteará outra mentira estampada em primeira página. É preciso abaixar as tarifas, gritará o presidente de uma associação de consumidores acostumado a gritar sem ao menos conhecer a própria voz. Essa questão deve ser avaliada com mais rigor. Há de se considerar certos detalhes que estão sendo sumariamente postos em segundo plano – essa será a fala do diretor de uma das empresas que supostamente age de maneira indevida, dirão mesmo abusiva, ainda que sem provas ou argumentos encorpados. O governo apresentará dados questionáveis em um power point inquestionável. E tudo será gravado, o que não significa que providências serão tomadas. Até porque as propostas costumam não comparecer a esse tipo de evento.

O indivíduo que irá conduzir a coisa chega em cima do laço – como se diz para precisar uma pontualidade afobada – e trata logo de dar início aos trabalhos. Foi com essa criatura atarracada que ele conversou por telefone, tentando convencê-la a modificar a ordem de fala dos que iriam compor a mesa. Essa foi uma determinação do diretor para o seu assessor. Queria que o inimigo falasse primeiro, julgava mais confortável assim. Conseguiu contato somente quinze minutos antes de a audiência começar. Teve mais uma vez pouquíssimo tempo e nessa hora deu-se conta do risco que correra quando, cheio de maneiras, disfarçava seu temor experimentando gravatas.

Tudo correu satisfatoriamente. Seu diretor saiu-se bem, pode se dizer que brilhou. Admirava-o por isso, por saber atrair para si glória e reconhecimento sem despender grandes esforços. Fez lá suas anotações, solicitou uma cópia da gravação da audiência. O gesto de pálpebra quase imperceptível do diretor abordava-o. Queria saber de seu assessor como foi a performance. A resposta era um meneio rígido e vertical com a cabeça, sinalizando um entendimento de que foi positiva. Palavras agradáveis, sorrisos enfardados, apertos de mão protocolares, davam a deixa: era o fim de mais uma baixa comédia.

Com o corpo hirto, retornou ao hotel. Trocou de roupa, para ficar mais à vontade, arrumou suas coisas na mala, por último a ordinária gravata. Fechou a conta e dirigiu-se logo ao aeroporto. No caminho, a paisagem do lugar desconhecido embaralhava sua retina. Embora houvesse certo dissabor em aturar o fingimento de todas as coisas, em passear pelo poder ciscando um ciscar vagabundo, não fazia isso se queixando dos grilhões. Na verdade, via certa liberdade em aquiescer, e foi dispondo dessa licença que pagou o táxi e desceu com as malas. Sua maior vontade naquele momento era chegar o quanto antes em casa, refazer suas forças, serenar-se no único lugar realmente seu. No salão de embarque, o painel de partidas e chegadas indicava que o seu vôo estava atrasado.

Cartoon - João Zero

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3 Comentários:

Às 7:44 AM , Blogger Lidiane disse...

Guto.

Escrevi um comentário e perdi.
:(
Este vai ficar menor e sinceramente, muito aquém do outro, dedilhado com a bênção da madrugada. Enfim...

Sempre (sempre) esqueço alguma coisa e tenho de acordar mais cedo, desviar o roteiro. Claro, fico brava comigo mesma. Com os meus planos cartesianos que não dão certo.
Hoje, penso se não é proposital. Meu inconsciente ajudando o caos a se tornar amigo.
Quem sabe?
Eu é que não...

E, esquecer uma gravata... êêê vontade de liberdade!

Embora viajar seja um grande prazer pra mim, o melhor mesmo, é voltar pra casa.
Adoro a sensação de aconchego que o retorno me dá.
Meu colchão, minha vida de volta.
Tá certo que, partir, às vezes, aperta o coração e dá nó na garganta. Mas tudo tem um preço.

Como sempre, seu texto é tão bom de ler que economizo pra não gastar as palavras.

Um beijo.

 
Às 8:03 AM , Anonymous Anônimo disse...

Só mais uma coisa: o tempo vive. E gosta de se divertir às custas dos atrasados e dos amantes.
Ou... dos dois (ao mesmo tempo).

Beijo.

 
Às 2:41 PM , Anonymous Anônimo disse...

imaginei cenários: alguma coisa entre o Bonaparte e o Manhattan flat, imaginei o Brasília Shopping e o percurso dali ao Congresso, depois, o balão da dona Sara...qdo eu for ao cerrado, trago uma flor pra vc! beijo seco, mas sonhando com a chuva

 

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