quinta-feira, novembro 22, 2007

A primeira meia hora


Dinheiro, preguiça e traição: essas três palavras formaram o primeiro panorama do dia, logo quando abri os olhos, pela manhã, elas estalaram como se fossem ovos e minha mente uma frigideira. Não importa o processo pelo qual elas se insinuaram; às vezes as palavras me invadem, mas nesta ocasião se esparramaram e, derretidas à espera de algum sal, para ganharem melhor gosto, foram se afirmando alimento e acendendo a minha fome.

Não compreendo, a princípio, tamanha força, pois das três nenhuma traz significado ou lembrança atraentes. Era como se me pusessem contra a parede, como se eu tivesse cometido alguma injustiça, visto que havia nelas um rigor indestrutível, e tal seriedade, posta sem cerimônia assim nos primeiros bocejos do dia, só pode ser mau prenúncio. Embora praticamente qualquer palavra me encante, desconfiei destas, mas obviamente guardei a desconfiança a sete chaves.

Dinheiro é coisa que não encontra reinado em minha alma. Não se trata de recusa ou desfeita daquilo que, quando não existe, mata os prazeres mais simples e os desejos mais bobos. Já houve época, por exemplo, que não tinha nem uma moedinha para comprar um picolé. Mas nem por isso foi desperta em mim a vontade de possuir dinheiro abundantemente. Aliás, de certo modo, achava essa escassez um tanto divertida. Estranhamente divertida. Era o momento em que minhas angústias se desfaziam porque se revelavam absolutamente inúteis.

Da preguiça tenho ao mesmo tempo ódio e admiração, dependendo de como ela se manifeste. Existem os que, por preguiça, sugam energia alheia ou, pior, traçam planos impossíveis para justificá-la. Mas há aqueles que sabem viver a preguiça de um modo bem delicioso. Há um tipo de gente que assume uma lentidão, uma contra-corrente, uma pausa de tudo porque em seu íntimo conhece jardins muito mais floridos e ímpetos muito mais elegantes do que os contos da carochinha que este mundo nos apresenta como sedução. Estes seres são corajosos e, acredito, descobriram cedo como driblar a mentira, a arrogância, a culpa e outras bases nocivas para ficarem abraçados ao sossego do próprio calor.

A traição simplesmente é uma das poucas formas de existência que me transtorna a ponto de eu querer matar, de sentir a ira-combustível para o extermínio. Trair é enganar com maldade e prazer, é a mais profunda forma de desrespeito e a covardia mais cretina. A primeira traição conheci aos seis anos de idade, quando saí da casa de minha tia e voltei a morar com minha mãe, de quem mal tinha lembrança. Quando estava grávida de mim, ela socava a barriga, pulava os degraus das escadas, até um chá de um velho feiticeiro ela tomou, na intenção de me perder. O tal chá tinha tanta sujeira que a velha só fez tossir e vomitar, nada de aborto. Ainda bebezinho, me deu para Tia Lígia cuidar. Tive boa roupa e comida, ouvi ópera, Agnes Baltsa, Plácido Domingo, Alfredo Kraus... coisa que, apesar das torturas de minha mãe após ter me tomado de volta, jamais abandonei. Quando não rezava a cartilha da velha, ela me surrava com uma correia, a mesma utilizada para matar baratas. Antes de apanhar, mandava-me cheirar o couro. Não sei por quem fui traído – se por minha mãe, por minha tia ou pelo destino. Foi mais fácil depositar toda a minha fúria neste último algoz. Aos 17, fugi de casa. Matei o meu destino e fecundei um outro.

Separadamente, creio que tenho essas palavras muito bem resolvidas comigo. Mas juntas, conforme elas apareceram nesta manhã, me atemorizam. Até porque me senti inclinado a, conscientemente, subordinar-me a elas. Senti em mim uma força a me empurrar para o abismo do “faço qualquer coisa”, um alto grau de comprometimento de todos os meus atos. O bloco dos termos tornou-se absurdamente uma espécie de aspiração. Via-me aos pés da gratidão, pela concessão da manhã. Cabia-me agora o encargo de me reorganizar, com a maior prudência possível, já que estava dado o primeiro passo para uma grave desintegração. Devia começar por me dar por contente pelo fato de o meu passado ter se desapossado de mim. Havia também Margarida, que não tinha só nome de flor. Ela era o perfume mais honesto que já conheci na vida.

Fui então cumprindo com as primeiras rotinas, escovando os dentes, fazendo a barba. Embaixo do chuveiro, dinheiro, preguiça e traição me molhavam, me ensaboavam, me preparavam para mais um dia que, já previa, acabaria em exaustão. Mirei-me no espelho para achar um penteado diferente, passei o creme de Margarida na pele em busca de algum frescor inédito. Invenções selvagens de um ritual repentino, dúvidas latejantes. Eu já era o submisso ou apenas tentava me agarrar a pequenas alegrias salvadoras? Mastiguei o cereal mais lentamente do que de costume, bebi o copo de leite com certa aversão – eu que adoro leite. Dinheiro, preguiça e traição: acho que essas palavras me agradaram porque ainda não foram suficientemente rebaixadas pelo cúmulo insignificante. A minha esperança era, ao longo do dia, eliminá-las pelo suor.

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5 Comentários:

Às 1:46 AM , Anonymous Anônimo disse...

Cara nova, heim?

Seus textos sempre adoro, Guto.

Beijos em vc e na Lady.

(por que não tem o Oncotô na sua lista? :o( )

 
Às 4:15 AM , Blogger Guto Melo disse...

Vou colocar.

 
Às 10:42 AM , Anonymous Anônimo disse...

Gostei do novo estilo do site. E admiro o velho estilo de escrever. Dinheiro: A pior invenção do homem.
Traição: arma letal e mais infiel.
Preguiça. Arte de viver na velocidade que bem entender!
Abração.

 
Às 11:06 AM , Blogger Lidiane disse...

Duas dessas palavras têm assombrando meus dias.
E pra ser honesta, só o dinheiro é (muito) bem-vindo.

Beijo.

 
Às 9:45 AM , Blogger . fina flor . disse...

essa gente de Brasilia tem me encantado tanto..........

beijos e boa semana,

MM.

 

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