quarta-feira, fevereiro 20, 2008

O último gole d'água


Os risos são fartos e indissolúveis. Coisa de quem tem a vida frouxa e os dentes bonitos. De longe, aquele alarido de alegria, como uma fogueira queimando o silêncio dos ouvidos sinceros. Sim, o eco daquela satisfação excessiva era uma espécie de abuso, de injustiça. Tanto contentamento só pode ser signo de uma terra falsa, onde se plantou plantas falsas. No fundo, tanto riso acomoda a desimportância assumida diante dos arredores. Quem ri demais e sempre não se interessa por ninguém: é um viciado.

Dantas, de dentro de seu quarto, encolhido em seu beliche, ouvia essas risadas com o maior brio que pudesse arrancar do espírito. Na escuridão, a valentia não aparece e, para Dantas, eles não sabem do que estão rindo. Enfim, tanta gente reunida, às 4 da manhã de um domingo, e a morte continua sendo aquilo que não conseguimos iludir. Mais uma tosse, a dor que antes consumia somente o peito agora se espalha por todo o corpo.

Os objetos da casa, em sua quietude, não traziam paz. O tapete indiano paralisou tudo o que ali se encharcou – suores, uísques e traumas. Estes ficaram por conta de Lúcia e de sua eterna predisposição à beligerância. Quantos xingamentos, tantos que a memória nem mais aquece. A mulher de sua vida deixara dívidas, sonhos desfeitos, uma cicatriz na altura da vesícula desenhada pela faca do ciúme e o desespero terrível em quem teve de engolir uma ausência inesperada. Ela se foi, sem nada dizer, depois de tudo desmanchar.

Do camiseiro de imbuia, retirou um pijama limpo. Não queria mais dormir nu. Olhou para a peça como se fosse a última coisa que iria vestir na vida. Voltou para o beliche com os olhos úmidos de saudade da sua saúde. A força que outrora o compusera era a única coisa de que realmente sentia falta.

Tinha sede. Dirigiu-se até a cristaleira para pegar a taça em que ia sorver o líquido divino. As mãos tremiam com dignidade. A taça ganhava robustez, tamanha a dificuldade em mantê-la viva. A água tinha todos os gostos possíveis: de doce lembrança dos tempos em que aprendeu a andar a cavalo, da esperança que alimentou o seu jovem coração nas passeatas pela Cinelândia. Gritava-se tanto a expulsão dos homens que aleijavam o país! De amargura presente em cada traço da casa, dos vestígios da diaba que foi embora. “Mas um dia, um dia eu a amei com todas as minhas forças.”

As risadas prosseguiam, apesar da distância. Antes demasiadas, tornavam-se cada vez mais intermitentes. Dantas abriu um sorriso tenro, atento ao último gole d’água. A dor no peito jamais havia disparado tão resolutiva. O corpo, que jamais pertencera a ele, assumia esta verdade.

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3 Comentários:

Às 6:40 AM , Blogger Alex Alves disse...

Ó, Psilídio saltitante!
Fico feliz em ver sua pujança verbal, mesmo rodeado por tantos megawatts, reclamações parlamentares e afins.
Forte abraço.

 
Às 12:26 PM , Blogger Liana disse...

oi,oi!
hei, como vc chegou lá no meu blog??
eu que vim por aqui primeiro?
:?
humm,,

 
Às 2:52 AM , Blogger L.S. Alves disse...

E morreu enquanto os vizinhos faziam uma farra, ou seja, nem na morte o homem tem direito a paz.
Bom texto.
Um abraço.

 

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