quinta-feira, janeiro 31, 2008

Passeio pelas docas

Todo dia ela passava pela orla da Estação das Docas se exibindo para os estivadores que, entre a carga e descarga de um mercante, soltavam olhares de isca. Sandália arrastando no chão, saia de tecido fino, feita em casa. Ali, figurava o domínio ingênuo de quem arrebatava os homens rudes com uma flor pregada na blusa de malha, próxima ao coração, ao seu coração carmesim. Manu fantasiava seu corpo tocado por mãos grossas e calosas, amassado pelo músculo que o impulso mais genuíno engrandece. E era no porto que ela se entregava a todos os homens sem ser possuída por nenhum.

Um cargueiro romeno encosta e Jorval começa a colocar os sacos de soja dentro da embarcação. É o alimento que em vez de ir para a boca do nosso povo vai para os gringos – dizia para Anísio, os dois com a testa encharcada de suor. Bem ao longe, ínfima e exuberante, Manu toma água de coco. Ela está com Galina, as duas riem e passeiam de braço dado. Fazem careta para um velho maltrapilho que certa vez arrumou um jeito de trepar no telhado do armazém do Seu Hermínio, onde Manu trabalhou como balconista, para brechar os decotes generosos da moça e ficar se masturbando. Nesse dia, o velho ficou tão desorientado que despencou de lá de cima e quebrou a perna. Manu foi demitida e Galina assumiu o seu posto.

As duas viviam de uma farra lesa. Galina vez por outra contava a Manu os agrados que fazia em Seu Hermínio depois do expediente e que lhe rendiam um extra.

- Ele fica doidinho, mulher – Galina se acabava de rir.
- Não sei como você tem coragem. Um cabra feio daquele jeito - Manu se divertia.
- Ontem ele parecia que ia desmaiar. Eu rebolava, passava a unha, fingia que gostava. O homem só fazia gemer tremido.
- Eu é que não me presto a essa coisa chocha.
- Mulher, você pensa que dá futuro vir aqui jogar charme pra doqueiro, é? Não tenho essa experiência toda, mas até hoje não conheci um homem que soubesse tratar uma mulher. Nunca vi bicho mais bobo e fácil de tapear.
- Pois eu acredito no amor. E queria muito que o meu tivesse cheiro de mar.

No curto período de almoço, eles comem, fazem troça, cochilam e ouvem a melodia doce da flauta de Jorval. Ele estufa o peito e sopra as notas que saem macias para os ouvidos dos companheiros. Toca Asa Branca Jorval, pede Januário. Quando olhei a terra ardendo qual fogueira de São João / Eu perguntei a Deus do céu porque tamanha judiação... A cantoria dos doqueiros atrai Manu e Galina, que se aproximam da roda. Mãos ásperas em instrumento delicado, agradável contraste que mexe com os devaneios de Manu, alimenta a sua cisma vazante, faz sua alma deitar a espuma de ardores íntimos.

Depois deste dia, praticamente em todo horário de almoço ele contava com a presença de Manu na pequena platéia. Às vezes trazia Galina, às vezes ia só. Negro forte, alto e desengonçado, Jorval a olhava de beira. Olhos tímidos, mas quando eram para Manu se revelavam um pouco mais atirados. Em certa ocasião, ao entardecer, o exausto Jorval começou a tanger sua flauta de improviso e com inspiração. Composição própria, que ele intitulou “chamado aberto”. Manu, sempre zanzando pela orla, pôs-se logo atenta e desembrulhou a surpresa.

- Você toca bonito – puxou assunto com um elogio.

Jorval teve um sobressalto e lançou um meio sorriso, ainda apático de cansaço do dia extenuante e da descrença em ver Manu tão avizinhada.

- Você toca há muito tempo? – perguntou e sentou ao lado dele.
- Desde pequeno. Foi meu pai quem me ensinou.

Os dois se olharam com alguma inibição e Jorval seguiu flautando o seu chamado aberto. Manu apreciou como quem fosse o motivo daquela melodia, que soava por ela e para ela.

Refeito, o estivador amordaçou o seu estremecimento inesperado.

- Eu sempre quis te pagar um sorvete.

Manu se fez acesa. Estava manifestado o silêncio de um tempo, não sabia se longo, que se derramava em seus ouvidos na forma de um convite.

Os dois foram juntos ao quiosque da orla. Passos lentos em meio aos primeiros indícios de noite. Chegando ao local, Jorval perguntou que sabor Manu queria. Pêra! Pêra? Nunca vi desse. Mas tem, uma voz ao fundo anunciou. Jorval pediu um de flocos.

Continuaram pela orla, lambendo o sabor geladinho-refrescante da surpresa. Depois de algum tempo sem trocar palavra, eles simultaneamente tentaram reiniciar a conversa. As falas sobrepostas provocaram um sorriso em ambos.

- Fala você primeiro – Manu fita Jorval do tórax aos lábios.
- Qual o seu nome?
- Manu. Manu de Manuela.
- E o seu?
- Jorval. Jorval de Jorvalino.

Manuela cai na risada.

- Tá rindo de quê?
- Nada não... Você disse que nunca viu sorvete de pêra. Quer provar um pouco do meu?

Jorval foi em direção ao sorvete já um tanto derretido e quando estava prestes a prová-lo, Manu despistou. Tirou da boca do doqueiro e esfregou-o bem ligeiro em seu rosto. Jorval, irritado, quis fazer o mesmo mas teve seu impulso contido. Com a mão, ela o segurou; com a língua lambeu o sorvete de sua face.

A lua crescente no céu parecia estar se divertindo com a pirraça da menina. Jorval paralisou, ficou sem saber se gostava ou não. Manu pegou em sua mão.

- Vem comigo.
- Pra onde você vai me levar?
- No caminho eu te conto.

Manu sentiu um cheiro de mar que vinha do corpo másculo e sem jeito de Jorval. Arrepiou-se com o olfato e quis dar o passeio mais longo de sua vida.

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1 Comentários:

Às 10:07 AM , Blogger Claudio disse...

Muito interessante o texto. A inocência que precede a sensualidade.
Abração

 

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