domingo, setembro 20, 2009

Brisas e foguetes - parte 2



Nos últimos dias vem observando o movimento de todos ao seu redor de modo mais detalhado. Uma sobrancelha que se eriça, o entrelace dos dedos das mãos, um olhar que se encolhe ou se arregala, um semblante de “nem te ligo” tentando disfarçar sem êxito a intensa raiva que come por dentro. Afinal, para aprender o fingimento, é necessário estar atento a esses alimentos de percepção e de cinismo, a isso tudo que nos torna simultaneamente espertos e covardes.

Há alguns anos não via o mar. Provocou hoje um reencontro com este sem fim de água salgada em forma de maré. Ao por seus pés na areia, sentiu-se acariciado pela natureza. Sem entender, começou a rezar, a pedir para a morte não chegar tão cedo. Mais tarde um outro reencontro aconteceria: Júlia, aquela mulher que o menino do espírito magro jamais soube se foi sua. Ela iria aparecer em algum momento para por os pés na areia junto com ele.

Os pés de Júlia eram delicados, tão delicados, extremamente delicados. Pareciam não ser feitos para pisar ou caminhar. Levita, minha coragem ausente... E faz de mim o que bem quer. O menino do espírito magro acendia esperanças com o isqueiro da memória. Havia uma oportunidade para rever-se bom, deveria haver pelo menos. Olhou para o céu e convenceu-se de que estaria lindo nesta hora. Não poderia falhar.

Da vida sempre lhe restaram as migalhas. O pão mesmo, com miolo mole e manteiga, ficava para os seus inimigos burros. Daí, julgava-se mais burro que eles. E vivia o abandono de sua própria fúria contida, acocorada - uma fúria na posição de cagar que não expulsava merda nenhuma. Uma estupidez a lanciná-lo com o silêncio da força que não acontece para fora.

A maré foi aumentando, o mar ficando mais cabuloso. As dinamites que explodiam na Cantareira e faziam as janelas da sua casa tremerem destruíam o seu vigor de espera. Júlia não viria, denunciava o passar das horas. Mas lá ao longe, havia um cisco humano. Quem sabe, o coração se alegrava. Quem dera, o coração se assumia.

Os pés na areia não deixariam pegadas. Júlia teria de ressurgir.

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