quarta-feira, julho 16, 2008

O silêncio e a navalha


Estavam todas felizes, risonhas, palavras saltitantes em bocas carnudas mesmo quando tinham os lábios finos. O assunto era a vida de todos, mas não se tratava de fofoca. Uma celebração acontecia, uma exaltação da alegria de viver, da doçura em estar desperta e atenta ao que se oferece. Vivian, filha de Rosa, já estava fazendo um pão de abóbora melhor que o da mãe. Joísa esperava um bebê, para a glória rechonchuda de Henriquieta. Finalmente, avó! A flacidez da bochecha chega desaparecia.

Deda dava as boas do marido, que respondia bem ao tratamento contra o alcoolismo. Três meses sem uma gota, nem parecia verdade. Falava enquanto metia a tesoura no cabelo de Chicória, a única para a qual olhavam com certo estranhamento. Ela havia deixado o seu homem, tão cobiçado por todas, tão elogiado pela fineza e educação. Carlinhos, além de sempre sorridente e amável, era cheiroso, fazia as unhas, passava creme para hidratar a pele seca. Quem seria louca de deixar uma raridade dessas?

Chicória. Não só o deixou como o sepultou. Para todas que se aproximavam, querendo bulir em seu íntimo, dava a mesma resposta: o silêncio. Ninguém conseguia arrancar uma mínima confissão. Seguia a conversa animada, vez em quando um rabo de olho para Chicória, indagativo, perscrutador. Deda caprichava no visual da mulher que um pio não dava.


Um estrondo se ouviu na porta. O marido de Deda havia tido uma recaída e gritava pelo dinheiro da mulher. Deda dizia não dou e levava um bofetão no rosto em resposta. A essa altura, todas já tinham se picado dali. O homem insistia, gritava e batia até que a palavra dinheiro foi interrompida pela navalha que atravessou a sua jugular. Podemos voltar ao ponto onde paramos? – perguntava Chicória, segurando o instrumento que sacara do assoalho.

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1 Comentários:

Às 5:34 AM , Blogger Lidiane disse...

Os pequenos (e grandes) dramas de um cotidiano escondido pela falsa felicidade de ser o que não se é.
O silêncio.
E o cheiro azedo do sangue na navalha...

Guto, estou por aqui. Eu, os ipês e a terra vermelha. Sem o seu e-mail.
Escreve pra mim se puder.

Beijo.

 

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