terça-feira, dezembro 19, 2006

Duvi-dê-ó-dó!

Vez por outra Zito Corrente é comparado a um desconhecido. Fulanos e sicranos e beltranos da vida anunciam aos alísios que ele tem a cara de um tal Ricardo, o jeito e o modo de falar de um Albuquerque Prado, que é igualzinho àquele amigo bulhufas ou sem tirar nem pôr como Armandinho Rouxinol. Sente-se o tipo mais comum da face esplêndida deste planeta ou, pior hipótese, um pitecantropo ordinário – algo como macaco de imitação quase homem. Um tanto amuado e solitário, Zito cogita umas pitadas em fumos feiticeiros e, zoado do espírito, levar um lero bruxo para tentar esclarecer em que furo da evolução ele se situa.

Vai então ao Terreiro do Pai Joá, o pai-de-santo mais badalado das redondezas, para uma consulta. Em meio ao gesso das estátuas e à iluminação pálida, Pai Joá figura volumoso, gordo de não caber em si. Ele incorpora o espírito de Darwin, que com voz encrespada solta pausadamente: duvi-dê-ó-dó!

O espírito prossegue

- Duvido que o Ricardo tenha a mania de cheirar os dedos da mão depois de ter cutucado as unhas do pé; que o Albuquerque Prado coma as próprias caspas; que o amigo bulhufas de quem quer que seja lamba perebas como quem se lambuza na papaia e que o Armandinho Rouxinol faça bolinhas de remelas e cravos com tanto prazer e glória.

Zito Corrente arregala os olhos. Ele está arruinado com tanto atrevimento exclamativo, com tanta revelação. Deixa o terreiro e dá início a uma mudança radical em sua vida. A partir de então, começa a anotar todos os suspiros, chispas, entrecortes, prestar atenção no mínimo movimento de cada coisa, na mínima ziquizira. Torna-se poeta e casa-se com Lúcia Pitélia, mais conhecida como Xodozeira.

Hoje acredita que esse papo de igualzinho é um modo de exercício coloquial da ingenuidade. Tem outras assimilações do saborodor das lâminas córneas, da polpa de secreções, das películas escamosas, feridas imprecisas, afecções sebáceas, da espessura das crostas. Acredita também na chuva miudinha, no folhelho fino com que se enchem os colchões e nas maisventuras do viver. Tudo é farinha da terra, de guerra, de pau, de rosca. Vitamina branca e fina para a escrita. Fé no sentimento e na palavra, que vai para o papel com a tinta da entrega.

Acredita igualmente no amor de Xodozeira. Com ela, monta um lar, família e tem doze filhos. Nenhum deles se parece com Zito. E a primeira palavra que todos eles aprenderam a falar foi duvi-dê-ó-dó.

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2 Comentários:

Às 3:21 AM , Anonymous Anônimo disse...

Cara, esse conto também é jazz.

 
Às 4:29 PM , Blogger Jane Malaquias disse...

Escrever e coçar é só começar.

 

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