quarta-feira, junho 25, 2008

O dito e o não dito - parte 4

Discordância. Sempre ou quase. Um modo de exercitar as diferenças. Óbvio. Elas precisam ganhar músculos, viver a hipertrofia da opinião instantânea, a glória raquítica dos bares. Nada do acanhamento do okei ou do aceno caduco do sim, penso como está posto. Tantas farpas trocadas para no fundo se dizer o mesmo. No fundo, cavando bem, é possível encontrar um baú, com uma série de rusgas inúteis, tesouro de cada ser que destoa, desafina para provar as coisas que desconhece ou testificar o limite da paciência do outro. Para estes, o melhor remédio talvez seja oferecer flores, cultivadas há muito no jardim da própria casa. Como pode existir um diálogo entre farpas e flores? É uma questão para se investigar.


Discordância, só quando vale a pena. Por exemplo, uma boa chacoalhada em campos hipócritas. Apenas estalos não servem, seria um diálogo entre dois tipos de hipocrisia. Penso que paralisar o rosto da impostura também resultaria bem. Sim, imaginar uma fileira de fingidos imóveis é como sentir cócegas. E o riso nervoso sai do espírito zarabatana e atinge o olho do embusteiro, que cega. Não seria fantástico, alguém dessa estirpe cegar por causa das cócegas de um justiceiro?

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sábado, junho 14, 2008

O dito e o não dito - parte 3

Diálogo a perder de vista :


- É difícil andar na rua e respirar o equilíbrio entre o cinza, o branco e o teu rosto
- Pareces que estás longe de casa
- Minha casa é o vento e a imensidão
- Mas quanto ao amor, não residias lá até a semana passada?
- Amar é verbo que só existe no infinitivo
- E a dor? A dor pode ser conjugada?

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quarta-feira, junho 11, 2008

O dito e o não dito - parte 2

Depoimento de Antônio:

às vezes é difícil dizer as coisas. Não é à toa que existem esses cursos por aí, de oratória e tudo mais. Quanta gente conheço que tem medo de falar. Vergonha. Vergonha de quê? Meu avô me dizia, na sua analfabeta sabedoria: “vergonha é roubar e não poder carregar”. Grande vô. Aquele sabia viver, sabia dizer as coisas. Acho até que o aumento do número de gagos no mundo tem a ver com isto: gente que não sabe dizer torna-se gago mais facilmente.

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domingo, junho 08, 2008

O dito e o não dito - parte 1

Depoimento de Joana:

ontem eu ouvi uma coisa que me chateou. Perdi o dia. Hoje a pessoa veio me pedir desculpas. Fiz outra cara, de quem não estava muito aí para o que foi dito. Ela me perguntou: está chateada? Disse que não. Que sabia que ela estava de cabeça quente. Eu sabia que ela havia falado a verdade e não estava de cabeça quente. Ela sabia que eu sabia. E a amizade continua.

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quarta-feira, junho 04, 2008

A casa de Osvaldo

A casa de Osvaldo era feia e misteriosa, dava a impressão de que a qualquer momento poderia desmoronar. Uma casa impossível, toda feita de pau, todos os paus tortos. Como aquilo se mantinha de pé? Meus olhos procuravam alguma base mais sólida, um suporte que fosse pedra, rocha, cimento, tijolo. Mas só a madeira oca a vista alcançava, sempre a pôr em xeque a saúde da casinhola. Uma criança desconfiada nem sempre vê o que está diante de si com magia. De um modo estranho deixava escapar os contornos mais singulares do desenho, seus ornatos e acréscimos.

Com medo e curiosidade, fui me aproximando da casa lentamente, dia após dia, durante meses. Nas noites de sexta, uma batucada enérgica retumbava o temor do bruxo, que em seu quintal entoava cantos esquisitos para comandar uma massa de fiéis deformados.

“Omulu, aiê, atotô,
é um orixá!
pede que ele dá, atotô,
ele é orixá!

...Pisa na macumba de ganga.
que, querê, quê quê, ô ganga.
saravá seu omulu, qui é ganga.”

E o enorme caroço da perna de Seu Arlindo se desfazia. Mancos, gente com o corpo coberto de feridas se reabilitava. Pedro jamais conseguira curar uma glândula enfartada na sola do pé, vivia de pisar naquele núcleo duro, esmagando a dor, que doía cada vez mais. Ia toda sexta, esperançoso como nunca estivera antes.

Na casa, além do bruxo Osvaldo, morava Bira, um rapaz alegre e banguela, de olhos avermelhados e cheiro forte. Gostava de jogar futebol com os moleques menores que ele e, apesar disso, sempre perdia de lavada. Para equilibrar a partida, Bira corria de braços abertos, aos gritos, e com suas axilas fedidas assustava os meninos, que acabavam por largar a bola em seus pés. Os que viam o jogo de fora, como eu, desmontavam-se de rir das presepadas do moço e, vez por outra, tacavam pedras na bola para tentar atrapalhá-lo. Certa vez, uma pedrada lascou seu tornozelo. Bira não teve dúvida: o autor da gracinha foi parar dentro de um latão de lixo.

A esta altura, eu já estava mais próximo da casa. Já era capaz de alisar a madeira do portão de entrada, embora tomado por imenso pavor da cobra jibóia que vivia lá dentro. Osvaldo pouco vinha à rua, mas quando o fazia, trazia a danada enroscada nele. Sua cabeleira ruiva e volumosa conferia a ele um tom ainda mais extravagante. Davi, desgostoso de chegar perto do demônio, alertou: vai não menino. Mas menino foi, numa dessas sextas de batuque.

Por trás da casa, gritos de libertação em meio a chamas que não sabia como não lambiam tudo. Osvaldo, ao centro, em uma cadeira rústica, vestia uma roupa leve e tinha um olhar compenetrado. A cobra passeava pelo seu corpo como se tivesse o ensaboando. As pessoas que se aproximavam do bruxo, ou recebiam um toque de suas mãos, ou uma leve picada da cobra. Bira, uma espécie de assistente, vestia um lindo conjunto branco e, de longe, parecia uma ave perfumada.

Com cuidado para não ser descoberto, tentei um ângulo mais favorável. Não queria nada escapando do meu olho, nenhuma manifestação ou ousadia – atos que ainda residiam no mais raso de minha compreensão. Foi por não suportar o espanto, ao ver sair da boca de uma velha uma quantidade interminável de surrupeios, que o grito se desprendeu de mim. Imediatamente, os bichos vieram em minha direção como pequenos dardos. Corri para dentro do jardim sinistro, na lateral esquerda da casa. Os surrupeios zonzos se chocavam com os troncos das árvores, derrubavam os frutos da figueira-brava, outras árvores iam surgindo, nas já existentes formavam-se mais galhos. Repentinamente, um labirinto se criou. Com dificuldade, consegui escapar, mas, no meio do caminho de volta, a jibóia armava seu bote. Seria eu engolido em meio a tambores e vozes inarticuladas pela dor, fúria e êxtase. A cobra abriu a sua caverna, meus pés tremiam feito uma alma verde. Mas Osvaldo, com um gesto insano, paralisou a cobra no ar e me retirou da emboscada.


Em seu olhar, via o comando para que eu não mais voltasse, como se meus pés não fossem para aquelas terras. No dia seguinte, meu corpo estava repleto de pêlos, meus braços pareciam caules, um terceiro olho nasceu e o asfalto estava tal qual lama. Sentia a casa de Osvaldo morando dentro de mim. Eu era um menino lindo e esquisito, sorridente diante do espelho.

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