quarta-feira, maio 28, 2008

Aprendendo matemática

Pequeno corpo celeste dentro de um planeta, que agrega outros corpos miúdos feito o meu. Uma relação de conter e estar contido, matemática básica que desde cedo aprendemos, mesmo sem ter despertado uma consciência espacial. Os lugares foram feitos para nos situar, o que só acontece quando entramos neles e atentamos para essa matemática dos conjuntos. A interseção com as coisas do mundo vem dos tempos de criança, quando levamos os objetos à boca. Mais uma operação precoce a se refletir continuamente ao longo de cada trajetória e no modo como realizamos descobertas.

Encontros e relações têm um quê de interseção. Fala-se muito de união e desunião nas relações; pouco se fala da interseção, desse corte que cada ser humano oferece ao se aproximar, desse eixo duplo construído a partir do que instintivamente se enlaça, do produto simultâneo. Da mesma forma, as relações são marcadas pela aritmética mais vulgar. Vivemos de somar, subtrair, multiplicar e dividir o tempo inteiro. Seja reconhecendo, em meio ao nosso processo constante de transformação, o que o outro nos adiciona; seja por conta de uma atitude violenta que subtraia uma virtude preciosa, ainda que temporariamente; pela distância ou tempo triplicando uma saudade; pelo algo se partindo, às vezes de modo exato, às vezes deixando restos.

Para além da aritmética, razão e proporção parecem, nos dias de hoje, apontar para uma álgebra esquisita. Alguém dá um tapa e recebe em troca um tiro no olho. Isso talvez pudesse ser chamado de desrazão e desproporção, no pior sentido dos termos, mas evidencia a deformação matemática preferida de nossos tempos. Logo após, no ranking algébrico, as equações formuladas em planejamentos sem delta nem raiz: não resolvem “x” algum de questão nenhuma, apenas revelam a incapacidade humana diante do que permanece incógnita.

Já na geometria, cabe toda a abstração que dá contornos à beleza e a incursões subjetivas. Nela residem a angulação dos pontos de vistas e as estruturas, mais ou menos flácidas, das obras de arte. Também foi a partir de um “sopro” geométrico que o universalismo platônico despontou com o ideal de bem comum, criando um dos alicerces da filosofia política no mundo. Em Timeu, o artesão divino busca pôr ordem à desordem que naturalmente a geometria do universo propõe. Para Platão, de modo análogo, a Justiça, resultante de um ordenamento racional, só se manifestava se o governante incorporasse ao seu espírito a virtude do Bem, visto como eterno e absoluto. Apenas o governante que procedesse dessa forma teria a capacidade de ser justo e proporcionar o bem comum.


Na probabilidade está o fascínio pela sorte, que gera o gosto pelo risco. Arriscar-se traduz um imenso desejo por sorte. A exposição ao perigo traz, ao menos no plano mental, o sofrimento como resultado mais provável. Em um exemplo rude, trepar sem camisinha é correr o risco de se contaminar; por outro lado não há certeza de contaminação e muitos se arriscam contando com a sorte. Existem também formas mais brandas de experiência acerca do provável como, por exemplo, jogar na loteria. Apostar na mega-sena, ganhando-se ou não o prêmio, não acarreta nenhum tipo de insegurança para o apostador. Talvez porque o bilhete milionário represente a sorte grande, e o perigo guarde relação com sortes nanicas.

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quinta-feira, maio 22, 2008

Para ter olhos mais acesos


Imagino que, no bocado que já andei por aí, tenha deixado rastros de mim, vestígios que possibilitariam a qualquer ser humano mais atento seguir-me, por onde quer que eu ande. Imagino sombras espelhando o desenho de um comportamento meu, uma atitude minha, e gosto de pensar que essas sombras servirão de refresco em dias de calor na memória do outro.

Lembrar é uma espécie de brilho que se realiza mediante o resgate de afetos. Lembramos para atualizar o registro de nossas vivências, com um quê de fantasia a ocupar as brechas que o próprio lado falível da memória nos proporciona. Então, lembrar-se também é reinventar-se. E por meio dessa restituição, do que o passado nos devolve, abraçamos o instante com sede por um futuro cada vez mais repleto de memória.


Eu vivo de me lembrar. Não por sofrimento, mas, digamos, para ter os olhos mais acesos.

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sexta-feira, maio 16, 2008

O ato da entrega

De um modo geral, a entrega de cargos neste país está atrelada a algum escândalo, ainda que não comprovado. Políticos largam o osso porque a corrupção arromba seus postos. E não é só um cargo ou um lugar de fala o que não pode ser sustentado. A insustentabilidade, embora momentânea, de um caráter fidalgo, que sempre vestiu o aparelho estatal, é o aspecto mais positivo trazido por toda a avalanche de sujeira exposta na mídia. Se não somos capazes de mudar o rumo do país pela via do entendimento das nossas falhas históricas de caráter, então que seja por meio do bico da águia, faminta por notícias e “verdade”.

Talvez seja por esse costume de ver o ato da entrega de cargos como conseqüência da prática da corrupção que muita gente se surpreendeu com a saída da ministra Marina Silva. Como assim? Não houve nenhuma maracutaia, nenhum feito ilícito? O ato da ministra soa como ousadia por, de certa forma, quebrar uma expectativa automática. Além do mais, saiu sem antes levar um papo com o presidente, tramando a retirada na surdina, mostrando que por debaixo dos panos a dignidade também é possível. Sua decisão, repentina porque silenciosa, é fruto de um tipo de coragem que decorre do cansaço. Mas a falta de resistência para continuar em exaustivas quedas de braço é apenas aparente ou, pelo menos, não se converte em paralisia, embora a própria ministra tenha afirmado que a sua saída se deve à estagnação do governo nas questões ambientais.

Em vários momentos o cargo da ministra esteve ameaçado. Ela mesma já havia dito que se considerava uma exceção e a turma anti-Marina, os ditos desenvolvimentistas, nunca se mostrou disposta a conviver com o “desvio”. Exceção não apenas pelo que defendia. A acreana Maria Osmarina, ainda menina, “cortou seringa”, plantou roçado, caçou e pescou para ajudar o pai a sanar uma dívida com um seringalista de Belém do Pará - o patrão financiara a viagem de volta ao Acre para toda a família, que não se adaptou em terras paraenses. Alfabetizou-se apenas aos 17 anos, após se mudar para a capital, Rio Branco, em busca de curar uma hepatite que estava sendo tratada como malária. Depois da alfabetização, cursou supletivos enquanto trabalhava como doméstica, ingressou na Universidade Federal do Acre e se formou em História.

Esta brilhante exceção saiu da floresta, conviveu com Chico Mendes, liderou movimentos socioambientais e foi mais uma vez para a capital, desta vez a do país, como a mais jovem parlamentar a ocupar uma vaga no Senado Federal, derrubando ex-governadores, empresários e outros velhos caciques da política regional. Ao se tornar ministra, travou sem cessar vários embates com o governo, não só a respeito dos desmatamentos, mas em questões ligadas a produção de alimentos transgênicos, saneamento básico e outras de sua pasta.


Tamanho capital biográfico deve ser uma ofensa para quem tem cifrões tatuados na testa ou para os que respiram o ar da retórica a fim de, com todo fôlego, sustentar um discurso que não possui lastro na realidade. Marina é sincera, ética, de fala simples e inteligente, detentora de um brio admirável e outras qualidades há muito ausentes entre os políticos. Marina não é fidalga e tem o que sustentar. Ela é o acerto de caráter, maciço como a mata fechada, digno de seu ato de entrega.

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quinta-feira, maio 08, 2008

Meus bichos jamais partiram

Todos os bichos que tive, ou morreram cedo, ou foram dados, ou se perderam de mim. O primeiro foi um pequinês, bem engraçadinho, que durou pouco tempo porque meu irmão, ainda um ser que engatinhava, vivia metendo a mão na caca do cachorro e esfregando-a no rosto. Por conta do porquinho, perdi o cachorro.

Depois veio Badaró, presente de um amigo. Badaró era uma tartaruga. As tartarugas são seres silenciosos, elegantes em seus cascos. Todos os dias, ao chegar do colégio, eu verificava as vasilhas da alface e da água. Com a cabeça para fora, ela desenhava um trejeito que parecia ser um sorriso lento e cheio de fibras. Eu entendia como um gesto quelônio de gratidão.

Uma das coisas mais belas que Badaró fazia era bocejar. Seu casco, em minha fantasia, se esticava. Também gostava quando, com o dedo indicador, coçava a cabecinha dela. No início, ao perceber a minha tentativa de aproximação, ela se recolhia. Depois, passou a permitir o carinho amigo, mas cerrava os olhos. Ela se foi, por acidente. Ao descer um batente alto demais, ficou de casco virado para baixo por um tempo além da conta. Foi silenciosa até em seu momento de perigo fatal.

Outro que morreu, este em minhas mãos, foi Jimmy Hendrix, meu cão filarata (fila de raça, viralata de alma). Como cresceu rápido e se afeiçoou rápido e latiu e estranhou toda a gente que não era da casa muito muito rápido. Jimmy era estabanado, alegre e cagão. Não resistiu a uma parvovirose e morreu olhando para mim, como a se despedir, depois de uma última golfada de sangue. Eu mesmo o enterrei em um terreno próximo ao campo de futebol que ficava no final da rua. Não sei bem como explicar o que na época senti com estranha profundidade. Carregar um cachorro morto no colo por cerca de 500 metros e cavar a sua cova foi uma experiência repleta de beleza. Era a baba, o sangue, o vômito, a pele, a morte, o afeto, o descanso, tudo em meus braços sendo conduzido para o fundo da terra.

Antes de meu querido Jimmy, tive uns pintinhos. Os sobreviventes – um gato malvado comeu alguns - em pouco tempo ganharam a estatura de galetos e foram vendidos pela minha mãe a um senhor. Os pintos não se cansavam de pular com sua alegria amarela pela casa. Enfiavam-se por trás do sofá e da geladeira, não davam a menor bola para ninguém. Eram de um egoísmo admirável, sujavam tudo, inclusive meu quarto e os livros que, por distração, eu deixava no chão.

Foi em uma tarde magra, dessas que se espremem entre a hora do almoço e o princípio da noite, que as páginas manchadas de um livro aberto revelaram a travessura daqueles pintos. O poema Eu, Etiqueta, de Drummond, com aquela merdinha miúda em cima do trecho:

“Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo,
Desde a cabeça ao bico dos sapatos...”

As mensagens, letras falantes e gritos visuais não davam conta do meu riso, que àquela altura era simultaneamente uma saudação à irreverência deles e uma despedida antecipada. Depois que minha mãe os vendeu, não vi mais a menor graça em deixar livros pelo chão.

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