quarta-feira, novembro 28, 2007

A melhor dançarina de todos os tempos

A necessidade de engano... As amizades são um modo de enganar com conforto. Sabe aquele amigo que diz “adorei o seu trabalho” para poupá-lo de olhar a incompetência de frente? Porque ele é instruído em fidelidade e afeição, não ignora a inaptidão como uma das mais dolorosas revelações para qualquer mortal. Então, não faz muito sentido pinicar uma pessoa querida com o bico de suas próprias fraquezas. É mais sensato o disfarce, seria indecente não praticá-lo.

Essa proteção voluntária preserva todos da solidão, lógico. Uma premissa imperial que amarra as afetividades, mantém unida a trupe de miseráveis. Assim, fulano passa a ser amigo de sicrano porque o elogiou na semana passada, apesar de ambos não saírem do território da reserva. Os abraços são desfeitos logo após a primeira rusga mais séria, normalmente aquela que compromete a imagem de uma das partes. Mas isso seria em último caso, à roda de sócios não convém ficar quadrada.

Da mesma forma não convém ver a turma dos que bebem uísque com gelo e limão, usam banana como ingrediente de feijoada, dormem em pé no meio de uma conversa animada. No dia em que a vergonha deixar de ser fútil, a confiança nos homens se tornará a melhor dançarina de todos os tempos.

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quinta-feira, novembro 22, 2007

A primeira meia hora


Dinheiro, preguiça e traição: essas três palavras formaram o primeiro panorama do dia, logo quando abri os olhos, pela manhã, elas estalaram como se fossem ovos e minha mente uma frigideira. Não importa o processo pelo qual elas se insinuaram; às vezes as palavras me invadem, mas nesta ocasião se esparramaram e, derretidas à espera de algum sal, para ganharem melhor gosto, foram se afirmando alimento e acendendo a minha fome.

Não compreendo, a princípio, tamanha força, pois das três nenhuma traz significado ou lembrança atraentes. Era como se me pusessem contra a parede, como se eu tivesse cometido alguma injustiça, visto que havia nelas um rigor indestrutível, e tal seriedade, posta sem cerimônia assim nos primeiros bocejos do dia, só pode ser mau prenúncio. Embora praticamente qualquer palavra me encante, desconfiei destas, mas obviamente guardei a desconfiança a sete chaves.

Dinheiro é coisa que não encontra reinado em minha alma. Não se trata de recusa ou desfeita daquilo que, quando não existe, mata os prazeres mais simples e os desejos mais bobos. Já houve época, por exemplo, que não tinha nem uma moedinha para comprar um picolé. Mas nem por isso foi desperta em mim a vontade de possuir dinheiro abundantemente. Aliás, de certo modo, achava essa escassez um tanto divertida. Estranhamente divertida. Era o momento em que minhas angústias se desfaziam porque se revelavam absolutamente inúteis.

Da preguiça tenho ao mesmo tempo ódio e admiração, dependendo de como ela se manifeste. Existem os que, por preguiça, sugam energia alheia ou, pior, traçam planos impossíveis para justificá-la. Mas há aqueles que sabem viver a preguiça de um modo bem delicioso. Há um tipo de gente que assume uma lentidão, uma contra-corrente, uma pausa de tudo porque em seu íntimo conhece jardins muito mais floridos e ímpetos muito mais elegantes do que os contos da carochinha que este mundo nos apresenta como sedução. Estes seres são corajosos e, acredito, descobriram cedo como driblar a mentira, a arrogância, a culpa e outras bases nocivas para ficarem abraçados ao sossego do próprio calor.

A traição simplesmente é uma das poucas formas de existência que me transtorna a ponto de eu querer matar, de sentir a ira-combustível para o extermínio. Trair é enganar com maldade e prazer, é a mais profunda forma de desrespeito e a covardia mais cretina. A primeira traição conheci aos seis anos de idade, quando saí da casa de minha tia e voltei a morar com minha mãe, de quem mal tinha lembrança. Quando estava grávida de mim, ela socava a barriga, pulava os degraus das escadas, até um chá de um velho feiticeiro ela tomou, na intenção de me perder. O tal chá tinha tanta sujeira que a velha só fez tossir e vomitar, nada de aborto. Ainda bebezinho, me deu para Tia Lígia cuidar. Tive boa roupa e comida, ouvi ópera, Agnes Baltsa, Plácido Domingo, Alfredo Kraus... coisa que, apesar das torturas de minha mãe após ter me tomado de volta, jamais abandonei. Quando não rezava a cartilha da velha, ela me surrava com uma correia, a mesma utilizada para matar baratas. Antes de apanhar, mandava-me cheirar o couro. Não sei por quem fui traído – se por minha mãe, por minha tia ou pelo destino. Foi mais fácil depositar toda a minha fúria neste último algoz. Aos 17, fugi de casa. Matei o meu destino e fecundei um outro.

Separadamente, creio que tenho essas palavras muito bem resolvidas comigo. Mas juntas, conforme elas apareceram nesta manhã, me atemorizam. Até porque me senti inclinado a, conscientemente, subordinar-me a elas. Senti em mim uma força a me empurrar para o abismo do “faço qualquer coisa”, um alto grau de comprometimento de todos os meus atos. O bloco dos termos tornou-se absurdamente uma espécie de aspiração. Via-me aos pés da gratidão, pela concessão da manhã. Cabia-me agora o encargo de me reorganizar, com a maior prudência possível, já que estava dado o primeiro passo para uma grave desintegração. Devia começar por me dar por contente pelo fato de o meu passado ter se desapossado de mim. Havia também Margarida, que não tinha só nome de flor. Ela era o perfume mais honesto que já conheci na vida.

Fui então cumprindo com as primeiras rotinas, escovando os dentes, fazendo a barba. Embaixo do chuveiro, dinheiro, preguiça e traição me molhavam, me ensaboavam, me preparavam para mais um dia que, já previa, acabaria em exaustão. Mirei-me no espelho para achar um penteado diferente, passei o creme de Margarida na pele em busca de algum frescor inédito. Invenções selvagens de um ritual repentino, dúvidas latejantes. Eu já era o submisso ou apenas tentava me agarrar a pequenas alegrias salvadoras? Mastiguei o cereal mais lentamente do que de costume, bebi o copo de leite com certa aversão – eu que adoro leite. Dinheiro, preguiça e traição: acho que essas palavras me agradaram porque ainda não foram suficientemente rebaixadas pelo cúmulo insignificante. A minha esperança era, ao longo do dia, eliminá-las pelo suor.

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quarta-feira, novembro 14, 2007

Canção da América que não toca na rádio


América! Venha caber nos sonhos que os braços dos homens sejam capazes de levantar. Pois cedo a alma canta, mas para muitos o império se despedaça antes de qualquer vislumbre de esperança. A pedra, a areia, o reboco, todos os deslocamentos urgentes, a fuga da casa hostil. América, perceba a qualidade dos pelejadores que pisam em seu solo ácido, veneno para os pés, e não podem sequer fingir a ausência do crime em seus caminhos. Não por serem incapazes, mas por não possuírem o direito.

As suas bandeiras são de grana e posse. Labor e selvageria. Pedem por alento aqueles que não pretendem viver para esquecer-se. A aurora é o riso dos céus, a alegria dos campos. Portanto, América, seus vestidos rogam outras estamparias, mais finas e coloridas, expressão de um pano menos irritante. A pele nossa de cada dia é uma oração golpeada pelo machado do tempo, avessos incontroláveis, expedições inacabadas.

Há em suas delícias um quê de perversão. Nas promessas que ventila, armadilhas se tecem. Acreditar é uma exigência de seus dias; ofertar, um refúgio interessado. América, América! Tome tento que a irmandade, o auxílio forte, a gentileza, o abraço acordado – quente ou quase – as mais enérgicas manifestações de solidariedade, são cuspes de sua retórica.

E não é porque nos invade que devemos ser tristes em suas mãos. E nem o brilho de toda a tecnologia será capaz de provar que para cada partícula de alma existe um cobertor de lã. A ciência não vê além do binóculo, desperta a sede por cura prudente. No mato, América, existe tanto mistério! Mas a sua marcha avante engole florestas, destrói sabedorias, consome indícios caboclos para cada vez mais fazer fumaça.

América do leite com soda cáustica. América do desacato à soberania em busca de petróleo. América que finge ter compaixão de aidéticos africanos. América que produz diversos rios de corrupção, sem margens e com córregos caudalosos. América que usa moeda e idioma como mecanismos de tortura. América do cacete da polícia na fuça de quem ocupa as ruas para gritar: não somos mais América! América que nos deu o câncer como herança, medo e banalidade. Não queremos nem a pena, nem a punição, nem a glória bandida. Estamos prontos, para o que der e vier, sempre e alertas. Será tão difícil assim ouvir o nosso espírito?

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sábado, novembro 10, 2007

Uma fronteira para o grito


Inseguro entre o céu e a estepe, suspenso num fluir de roda gigante, embebido na minha nostalgia de centauros, eu devoro pedaços de musgo e raízes de plátano, estendido em jardins intermináveis onde se modelam arcanjos. Teria sido muito mais fácil escrever cartas de amor, para serem estendidas ao longo das estradas e pelas paredes dos tribunais - são inúteis para a vida, porém, estes poucos instintos que lentamente se devoram uns aos outros - sobra-nos apenas uma memória de fugas de amantes, a grandeza do gesto de um epiléptico, a solidão profunda dos grandes sedutores. Há sonhos, porém, que nos acometem com uma simetria de gaitas-de fole - há também a necessidade de escrever testamentos, sempre obscuros, insultando os jardineiros das praças públicas, e aqueles que comem hóstias com uma regularidade de aranha e armazenam pontas de cigarros em cofres de aço, temerosos da posteridade. É absolutamente necessário, também, conclamarmos à união os famintos de santidade, os guardiões de serpentes e domadores de circo, os exploradores dos subterrâneos das pontes e viadutos, os exilados voluntários, para partirmos juntos em busca da inviolável liberdade dos caminhos seguidos ao acaso, e da verdade contida nas escadarias, pórticos, e paredões desabados.

Texto - Cláudio Willer
Imagem - O Grito, Edvard Munch

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terça-feira, novembro 06, 2007

O beijo e as badaladas

Liberdade e beleza são duas lindas meninas que jamais envelhecem. O tempo passa, cava seus assentos em nossa trajetória, e as duas continuam a soar o toque festivo dos sinos. Blim-blom chamando agudo e grave o retirante que foge à seca. As badaladas vestem as meninas com uma renda bordada de som - ouvi-las no corpo delas: uma delícia dedicada, sempre a propor mais e mais. Ficar tonto das meninas é a melhor embriaguez que existe.

Em cada época há regras para estabelecer o que é ou não belo. Já o feio não conhece limites. Pode ser tudo - um olho vesgo, um andar desengonçado, cicatriz grossa de pele mal costurada, a inconveniência, obeso de banhas caídas, banguela de sorriso aberto, a deselegância, o defeito físico aparente, como dedos grudados ou o polidáctilo que deixa em nervos olhos habituados a imagens desinfetadas. Diante do belo, as convenções soam de um sino torturado. O feio escapa e, generoso, oferece a liberdade.

Devem existir experiências unânimes em torno do feio, o seu cemitério. Algo tipo ver um rato morto. Mas talvez até um tumor - célula degenerada, monstro de cabelo e pedaço de dente - deve ser visto pelo cirurgião com alguma voluptuosidade. Ali, frente ao corpo que ele rasgou, revela-se o emaranhado da desordem que não aprendemos ainda a desfazer.

Para terminar, gostaria de evocar a imagem de uma menina que cruzou a minha vida por umas três semanas. Ela tinha uma perna mais curta que a outra, um sorriso lindo e uma alegria verdadeira. Deve ter sido essa alegria a professora que ensinou para Lúcia um jeito tão hábil de andar. Ninguém queria namorá-la, recusavam a própria vergonha e não a moça. Um dia a beijei, primeiro na boca. Depois pedi para beijar a perna mais curta. Em um primeiro momento ela ficou tímida, mas acabou deixando. O beijo que dei naquela perna foi uma badalada de renda bordada de som.

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quinta-feira, novembro 01, 2007

Às margens da Goethe

Foi cheio de expectativas, aberto às novas, interessado em morar na beira do rio, em viajar de jipe pelos cantos de um outro mundo de sorrisos livres e determinados. Gua-í-ba, soletrava com o mesmo prazer com que arrotava após comer um macarrão com salsicha improvisado. Era por conta do salário curto - não ganhava mal, mas tinha muitos gastos - que fazia esses preparos às pressas, repentinos, mas que nem por isso deixavam de ser planejados. Afinal, ali pelos últimos cinco dias de cada mês, sentia espezinhá-lo o golpe financeiro dado pelo governo. A bolsa foi cortada! – Isso, assim, dito três meses depois de ter sido o primeiro colocado na seleção de doutorado. Sem a bolsa, os planos foram para a cucuia.

Trouxera sua Land Rover, modelo antigo, seu único luxo. Com ela, pensava em se meter pela Patagônia e outros sítios argentinos e chilenos. Dois países amáveis, belos, e beleza era a mola de sua vida, nem sempre iluminada, mas tampouco corrompida por tragédias. Estava sim, instigado a dar o salto grande, menos nos livros e mais nas andanças, a flertar com as sublimes formas do gelo, admirar-se com a elegância de um pato selvagem, encantar-se com a pelagem curta dos guanacos. Torraria todo o dinheiro de sua bolsa nessas aventuras que, por serem amenas, favorecem uma dedicação mais enfeitada. Estaria pronto para respirar todos os contrastes entre as montanhas gélidas e os desertos. Obviamente, observaria os olhares, pequenos gestos e toda e qualquer fagulha de humanidade. Gente, gente, toda a boa gente, acreditava, sentiria o ímã de seu embevecimento, a sua ferradura a comunicar as boas-vindas. Sim, pois ele também era um lugar e queria ser descoberto e habitado.

Conseguiu alugar um pequeno apartamento, às margens da Goethe, no meio da feiúra cinza e dos ruídos grossos. Terminado o primeiro semestre, voltou para Olinda em seu jipe, mais de quatro mil quilômetros de estrada. Apreciava, alegre, a mudança de cor e espírito à medida que ia subindo o país rumo ao seu torrão. Aqui em Porto Alegre, meu amigo, não há samba e onde não há samba não há amor – dizia com a autoridade de quem se veste da mais recente desilusão. Mas, quando passei por Minas, parei em um posto de gasolina para abastecer, tomar um cafezinho, e todos sorriam para mim. Fui alimentado pela inclinação casual que reúne as pessoas, pela afeição reta, que não se desvia, a gentileza de estranhos que identificam facilmente a fraternidade impagável do instante e nos aliviam dos abismos da convivência.

Retornava para sua chácara, em volta o cheiro do verde e do barro, a companhia do cão miúdo e de latido forte. Algumas visitas de amigos, regadas a álcool, maconha e conversa fiada, um pouco de fé na vida se deitava por ali, vento e recarga de mãos dadas cantavam uma nova composição. Era preciso banhar-se em todas as fontes, porque em poucos dias seria novamente seqüestrado por um cotidiano insosso e pelo compromisso com tudo o que não acreditava. Estaria lá, às margens da Goethe, onde uma poltrona velha no canto da sala o serviria para descanso das costas doloridas. A cada degrau de escada que subisse até o quarto andar, já que no prédio não havia elevador, pisaria na estreiteza, no aperto, na limitação de espaço. Entraria em casa sem limpar os pés sujos de desgosto, embora a alma tivesse se coberto de energia para mais seis meses. O cão, seu grande companheiro, regressaria ao mosteiro do padre Cardoso, um amigo da época da comunhão. Às margens da Goethe, na ausência do cão, criou laços afetivos com a poltrona. Batizou-a Nina, comprou adornos para ela, por vezes chegava a acariciá-la.

Eu nunca tive ilusões quanto à academia – ele apregoava. Jamais entendeu o porquê de a universidade ser vista como um lugar de distinção. Parecia, isso sim, algo desgastado, sem magia ou glória. Uma profunda caverna, com intelectuais brincantes de RPG, uns sacavam uma espada de Gramsci, outros se defendiam com um escudo de Bourdieu e assim por diante. Nada tinha doçura comparável a, por exemplo, um tambor de crioula solto em um quintal qualquer para a dança, o riso e a embriaguez de nobres mestiços. Nenhuma firula acadêmica esquentava o peito do homem que conhecera Severo, um ex-rico que tostou dinheiro em excessos de toda ordem. Ali nasceu uma sincera amizade, como nascem o sol e as feridas.

Severo um dia escreveu: “a maior parte dos homens de ação é imbecil”. Um leve sorriso abria o córrego da memória. O telefone tocava e, do outro lado da linha, Severo dizia estar roendo as paredes e perguntava: “posso ir para sua chácara?” As noites cubanas no Alto do Céu, com Jaci, que tão bem lavava a sua roupa e fazia o seu café, rumbas e merengues sacudindo os esqueletos dos velhos, traficantes vendendo pó para os mais moços, todos convivendo harmoniosamente, um tiro não se escutava. Tinha esses deleites sentado em Nina e ali, em seu encosto, ia adormecendo, o sono aquietando as lembranças. O dia seguinte esperava o futuro doutor, responsável, a cumprir seus créditos. Comeria algo como um pão com ovo no café da manhã, antes de sair daria um beijo em Nina e partiria para uma aula sem patagônias, estranhos cúmplices ou severos poetas. Desceria os quatro andares de escada, daria de cara com a Goethe movimentada de sempre. Seu coração bateria esnobe.

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