O Nelson Rodrigues dizia: o que seria de mim se não fossem as minhas repetições? E lá vou eu tentar dizer mais uma vez que o amor é a única coisa que me salva. O amor me enche de força, mesmo quando vem atrapalhado, confuso, tramando os enredos mais complicados, exigindo uma maturidade medonha, apavorante. Já me empapucei de amor a ponto de envergar-me nos braços de rainhas do subúrbio carioca, musas malandras, universitárias queridinhas. As queixosas me davam coceira na pele. Conseguia beijá-las, se a queixa fosse menor que a inteligência.
Durante muito tempo meu amor foi pobre porque era basicamente voltado às mulheres. Uma festa era menos festa se não tivesse o brilho delas. Quando cursava jornalismo e fui reprovado em economia, paguei a disciplina novamente com a turma de Nutrição, ao lado delas, mesmo tendo que acordar às cinco e meia da manhã duas vezes por semana, o que na época, para um boêmio como eu, era um sacrifício quase cristão. Mas fazia, com a alma repleta de contentamento, pois acreditava que acompanhado daqueles seres divinos eu entenderia melhor Keynes e suas idéias intervencionistas.
Houve também a fase do amor bruto, tal como é, sem esforços ou manufaturas. Este que é quase uma entidade, se apossa e faz com que a loucura mais absurda seja vista como uma bela paisagem de fim de tarde. Então me vi viajando mais de duzentos quilômetros com pessoas que acabava de conhecer, sem saber para onde. Andei em caminhão roubado, tomei cachaça com cinzas. Transei num mosteiro, em pleno carnaval, com todas as bandas e blocos passando. Meu amor passou a ser também pela aventura, pelo movimento, pelo gosto de ir. Reconheço que nunca vivi uma grande aventura, mas essa fase modificou o meu interesse pelas coisas.
Hoje vivo numa espécie de contorno ao mesmo tempo luminoso e escuro. Não reconheço fronteiras, alimento-me de um querer me gastar em todas as coisas. Sou capaz de amar qualquer lance, me encantar com qualquer doce. Seja a revoada de pássaros que me acorda pela manhã, a magia do sol ressaltando as cores de tudo, o sorriso de uma criança que a mãe segura pelo braço quando vai ao açougue comprar carne, o pipi do cachorro na grama, o horizonte, o mar e a saudade. Enfim, o amor virou o meu metabolismo, a minha energia fundamental. E o mundo só vive tapeando esse tipo de gente. Mas a vida não, a vida acolhe.
Consola-me saber que amar não basta, que há um fundo de mentira em tudo que se vive. Que a verdade só pertence a mim, a mais ninguém. Aliás, verdades só fazem sentido assim, quando são chamadas “minhas”. Por isso, sou infiel à história, traio o passado, não por sacanagem ou corrupção, mas por absoluta falta de fé no que está atrás. A memória, que tanto prezo e tanto exercito, divorcia-se constantemente de mim e me libera para novos tormentos. Ela vive a me azucrinar porque a exalto e a engano. Taí o lado escuro do contorno.
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