sexta-feira, outubro 26, 2007

Reles religioso



Caio vejo limpo o chão que uso
saio da semente da memória
alcanço a sola da vicissitude
retorno humilde ao meu nó de paraíso.

E sei que só saber não basta
milhões de cordas abjetas
ternuras esparramadas nas atléticas disfunções
cristalizadas ao dia
verbalizadas (sujas) à sombra da lua.

Um canhão de nostalgias dedo em riste para mim
ele tem bala de segredo meu (tento desconversar)
fujo - sou seguido - fujo - sou seguido
meu joelho, tropecei, feri meu caminhar.

Não há formas de encontrar o prisma exato
eu acho exatidão um poço de certeza ilusória
se o que busco resvala
para ela
resta-me a reza pela chance de nascer um outro.

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terça-feira, outubro 23, 2007

Saúde para mim

Marte dá um beijo em Vênus. É para circular mais, fazer-se ver magneticamente, numa irradiação por todas as esferas, intrusa no trabalho e na amizade. Essa letra tesuda faz as coisas direitinho, dinâmica, atordoada, saci perereca. Letra que jamais encolhe as pernas. E agora que ela está toda assanhada, desejo a mim mesmo muita saúde para agüentar.

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quinta-feira, outubro 18, 2007

Cartas do Tarô – O Pontífice

- Mestre, deixe-nos tocar suas vestes para que se ative em nós a consciência.
- Queridos, minha cruz tem seis braços, minhas bênçãos são tortas.
- Mas mestre, acreditamos que toda lógica e todo afeto sólido vão de lado.

O velho barbudo eleva a sua tiara com esplendor, o horizonte em síncope diante de seus olhos: o orgulho é o Sol; a preguiça é a Lua; a inveja é Mercúrio; Marte a cólera; Vênus a luxúria; Júpiter a gula e Saturno a avareza.

- Mas Saturno... Saturno não é o Deus do tempo? O tempo é avaro?
- O tempo nos aquece e nos mata.

Houve um sobressalto na tonsura dos dois discípulos e uma sutil degeneração do quaternário. O da esquerda abriu bem os dedos e apontou para a terra. O da direita fechou bem a mão e a ergueu para o céu.

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terça-feira, outubro 16, 2007

A divina natureza das coisas

Quando tivermos reduzido o máximo possível as servidões inúteis, evitado as desgraças desnecessárias, restará sempre, para manter vivas as virtudes heróicas do homem, a longa série de males verdadeiros: a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não partilhado, a amizade rejeitada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta do que nossos projetos e mais enevoada do que nossos sonhos. Enfim, todas as desventuras causadas pela divina natureza das coisas.

Memórias de Adriano - Marguerite Yourcenar

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quinta-feira, outubro 11, 2007

Mais uma de amor

O Nelson Rodrigues dizia: o que seria de mim se não fossem as minhas repetições? E lá vou eu tentar dizer mais uma vez que o amor é a única coisa que me salva. O amor me enche de força, mesmo quando vem atrapalhado, confuso, tramando os enredos mais complicados, exigindo uma maturidade medonha, apavorante. Já me empapucei de amor a ponto de envergar-me nos braços de rainhas do subúrbio carioca, musas malandras, universitárias queridinhas. As queixosas me davam coceira na pele. Conseguia beijá-las, se a queixa fosse menor que a inteligência.

Durante muito tempo meu amor foi pobre porque era basicamente voltado às mulheres. Uma festa era menos festa se não tivesse o brilho delas. Quando cursava jornalismo e fui reprovado em economia, paguei a disciplina novamente com a turma de Nutrição, ao lado delas, mesmo tendo que acordar às cinco e meia da manhã duas vezes por semana, o que na época, para um boêmio como eu, era um sacrifício quase cristão. Mas fazia, com a alma repleta de contentamento, pois acreditava que acompanhado daqueles seres divinos eu entenderia melhor Keynes e suas idéias intervencionistas.

Houve também a fase do amor bruto, tal como é, sem esforços ou manufaturas. Este que é quase uma entidade, se apossa e faz com que a loucura mais absurda seja vista como uma bela paisagem de fim de tarde. Então me vi viajando mais de duzentos quilômetros com pessoas que acabava de conhecer, sem saber para onde. Andei em caminhão roubado, tomei cachaça com cinzas. Transei num mosteiro, em pleno carnaval, com todas as bandas e blocos passando. Meu amor passou a ser também pela aventura, pelo movimento, pelo gosto de ir. Reconheço que nunca vivi uma grande aventura, mas essa fase modificou o meu interesse pelas coisas.

Hoje vivo numa espécie de contorno ao mesmo tempo luminoso e escuro. Não reconheço fronteiras, alimento-me de um querer me gastar em todas as coisas. Sou capaz de amar qualquer lance, me encantar com qualquer doce. Seja a revoada de pássaros que me acorda pela manhã, a magia do sol ressaltando as cores de tudo, o sorriso de uma criança que a mãe segura pelo braço quando vai ao açougue comprar carne, o pipi do cachorro na grama, o horizonte, o mar e a saudade. Enfim, o amor virou o meu metabolismo, a minha energia fundamental. E o mundo só vive tapeando esse tipo de gente. Mas a vida não, a vida acolhe.

Consola-me saber que amar não basta, que há um fundo de mentira em tudo que se vive. Que a verdade só pertence a mim, a mais ninguém. Aliás, verdades só fazem sentido assim, quando são chamadas “minhas”. Por isso, sou infiel à história, traio o passado, não por sacanagem ou corrupção, mas por absoluta falta de fé no que está atrás. A memória, que tanto prezo e tanto exercito, divorcia-se constantemente de mim e me libera para novos tormentos. Ela vive a me azucrinar porque a exalto e a engano. Taí o lado escuro do contorno.

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quarta-feira, outubro 10, 2007

Listerine em um discurso antigo


A política, quase sempre perversa, vive a bafejar felicidade em votos e juramentos, ainda que hoje não se caia mais nessa tão facilmente. Todos os governos do mundo, sobretudo os da América Latina, contribuíram para o nosso desalento. A demagogia dos homens do poder não conseguiu disfarçar os colapsos, as milhões de bocas famintas, a insatisfação dos povos em perceberem que o básico prometido nunca foi de fato cumprido. Morar, comer, estudar, trabalhar... Todos os governos do mundo contribuíram para a lástima de inseminar entre os pobres a idéia de que a felicidade é meramente ausência de tristeza.

Ademais, a atuação de estados fascistas e comunistas, por exemplo, foi enguiçada, não só por sua ignorância e violência, mas pela ingenuidade em acreditar ser possível apontar um caminho radical de bem-estar para toda uma nação. Por sua vez, o Welfare State só trouxe inchaço e disfunções. Antes das armas e do medo, havia modelos estatais insustentáveis, simplesmente porque não se diz aos indivíduos o que nem como buscar. Por isso, hoje os estados são uma espécie de mágoa que poucos estão dispostos a perdoar.

Estou cansado desse papo chato e vazio.

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domingo, outubro 07, 2007

O veneno da serpente



A felicidade escapa. Esse negócio de sermos felizes para sempre, de consumir esforços para que tudo fique bem a todo instante foi um dos venenos burgueses que aplicaram aos nossos dias. Desde quando a felicidade passou a ser um dever? Se somos obrigados a ser felizes permanentemente, a felicidade passa a ser uma tirania. E uma concepção opressiva de nossa fortuna só nos faz desconfiar do acaso, desenvolver o auto-engano em relação ao bem-estar e projetar nosso contentamento para longe de nós.

Por a felicidade ter se tornado simultaneamente cárcere e vedete em nossa sociedade, planta-se em nós a base de um duplo tormento. Como estamos praticamente condenados a ser felizes, a ostentar uma alegria, ainda que falsa, para afirmarmos ao mundo a nossa normalidade, silenciamos acerca de nossos sofrimentos. E ao calar sobre nossos males físicos e psíquicos, nos tornamos algozes de nós mesmos. Tal silêncio serve como resposta a um desejo externo, mundano, de nos manter traiçoeiramente felizes.

Ilustração - David Revoy

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quarta-feira, outubro 03, 2007

Coração de fogo

Satisfação é algo que não deve ser levado em regime de urgência. Então, meu camarada, você que gosta dos prazeres, não os encharque de aflição. A alma não suporta se apaixonar tanto e nem a paixão quer para ela um lugar assim tão vagabundo. Já basta a tontura que ela carrega em seu bojo. Se for urgente, passa a bater com a testa na quina dos próprios passos. São conquistas? São. Por outro lado, nem percebo.

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