sábado, setembro 29, 2007

Flecha de cheiro

Quando se moveu para o centro, ponto em que sempre depositou descrença irrestrita, queria formar as bases elásticas de sua grande aventura. Espalhar-se feito gás pelo mundo, com aparência de espuma, a partir das coisas mais genuínas e mais espúrias que o constituíssem. Ou então, em outro formato, algo como um sorvete de lepra, e ver em cada língua infectada a semente do contágio pela palavra.

Jamais pensara em permanecer agarrado ao que fosse proteção. Viu o reboco cair, seus nervos sumirem por entre as vértebras para a ciática desmentir a sua perna. Era a esquerda, que vibrava um acorde fino de dor lá na sola do pé. Nessa hora inventou de ser cigano e, como sempre viu as coisas ao revés, em vez de ler mão, leu pé, embora o pé não seja o avesso da mão.

Viu nas linhas do pé que o seu pulmão era atlético, que os ares ali eram transformados, viravam aromas, e o corpo assumia a forma de uma flecha de cheiro. O arqueiro nu apontava para o horizonte e disparava suas intenções, sem o encargo de acertar um alvo. O importante era o corpo-flecha-de-cheiro encontrar narinas, quais fossem, que suportassem ser penetradas com toda violência e não sangrassem. Quando isso acontecesse, estaria nos braços espertos da admissão mais encantadora.

Foi para essas coisas que cogitou segurança. Para que depois de se arrebitar, não pudesse cair assim fácil. E, como ainda não aprendeu a sentir que ser livre é o suficiente, buscou o poder para facilitar as coisas. Mas se atrapalhou todo porque - apesar de saber como ninguém escolher, expressar e defender o que gosta - perdeu a fé na persuasão. Optou, voluntariamente, por não querer convencer mais ninguém de coisa alguma. Então, a cada embate se manifestava a preguiça como um direito recém-conquistado e era justamente isso o que deveria nutrir e preservar agora.

Entretanto, vê também o perigo de ser preguiçoso depois de ter se movido para o centro e ainda não ter se tornado gás. Em momentos de desespero, clama pela aventura. Como resposta, o destino lhe apresenta passeios de barco, por um lago não tão fundo, com coletes salva-vidas. Ou ainda, um vôo curtíssimo para uma cidade vizinha que parece tanto com o lugar onde mora. Talvez seja melhor esquecer tudo e começar tudo novamente.

Marcadores:

quarta-feira, setembro 26, 2007

Os minutos e as honras

Amanhã haverá audiência e ele esqueceu a gravata. Deu conta quando chegou ao hotel, ao abrir a mala. Acordaria no dia seguinte ativado pela incumbência de antes passar em uma loja para comprar uma. Fazer o seu trabalho desviando-se das formalidades, por mais bestas que sejam, assegura no mínimo olhares de reprovação, caras e bocas de muita coisa por nada, pois neste meio de políticos, empresários, promotores e toda sorte de gente que acusa para ganhar dinheiro... neste meio o nada é muita coisa. Não queria ser cúmplice nesse tipo de vigilância. Melhor seria gastar alguns trocados, mesmo correndo o risco de se atrasar, o que também não seria bom.

À noite, na prévia do sono, conjeturas sobre a manhã que já nascia tensa antes mesmo de o sol dar as suas primeiras fisgadas. E se o comércio abrir tarde? Houver engarrafamento? Só tiver gravatas feias, que não combinem?... Caso o sumo da incompetência se infiltre de tal modo que não consiga comprar a bendita, o que dirá aos pares? Inventará que sua bagagem foi violada? Que o garçom do hotel derramou café em sua roupa (trazia duas blusas consigo, mas não duas gravatas)?

Não perdeu o sono por isso. Tinha poucas horas para repouso, mas o tempo pareceu correr lento, o que foi tomado por ele como um bom vetor de ajuda. Daria tudo certo. Acordou cedo, tomou um banho demorado e um café robusto, boas condutas para enfrentar mais um dia de calor e retórica. Saiu em busca da tal gravata e teria de resolver tudo em mais ou menos dez minutos, senão entraria no corrimão do atraso. O retardamento poderia ser justificado, talvez não a contento, pelo fato de não conhecer bem a cidade. Alguns ignorariam, outros tacitamente imputariam a ele a culpa por não ter se acautelado. Fosse o que fosse, seria menos embaraçoso que estar sem aquela língua pendurada no pescoço.

Informou-se na recepção do hotel que havia uma loja de roupas masculinas a poucos metros dali. Foi para lá faltando ainda vinte minutos para o horário em que ela costumava ser aberta. Foram chegando os funcionários menos importantes, que não tinham a chave para abrir o estabelecimento e trancar a aflição do cliente. Logo chega o gerente, conversa um pouco com todos, e inicia o dia. Sobe a porta, a compra é rápida, o dinheiro retirado da carteira sem cerimônia. Está perto do local da audiência. Só precisa agora de um táxi e mais cinco minutos.

No auditório, tudo vai sendo montado para o espetáculo em que uns atuam explorando o desalento dos mais pobres, outros imersos em suas crenças mais profundas e inúteis. Há ainda aqueles que buscam exercer influência com uma real contribuição, mas colhem apenas silêncio e descaso. Deu no jornal, um parlamentar com a face estourando de mentira vermelha hasteará outra mentira estampada em primeira página. É preciso abaixar as tarifas, gritará o presidente de uma associação de consumidores acostumado a gritar sem ao menos conhecer a própria voz. Essa questão deve ser avaliada com mais rigor. Há de se considerar certos detalhes que estão sendo sumariamente postos em segundo plano – essa será a fala do diretor de uma das empresas que supostamente age de maneira indevida, dirão mesmo abusiva, ainda que sem provas ou argumentos encorpados. O governo apresentará dados questionáveis em um power point inquestionável. E tudo será gravado, o que não significa que providências serão tomadas. Até porque as propostas costumam não comparecer a esse tipo de evento.

O indivíduo que irá conduzir a coisa chega em cima do laço – como se diz para precisar uma pontualidade afobada – e trata logo de dar início aos trabalhos. Foi com essa criatura atarracada que ele conversou por telefone, tentando convencê-la a modificar a ordem de fala dos que iriam compor a mesa. Essa foi uma determinação do diretor para o seu assessor. Queria que o inimigo falasse primeiro, julgava mais confortável assim. Conseguiu contato somente quinze minutos antes de a audiência começar. Teve mais uma vez pouquíssimo tempo e nessa hora deu-se conta do risco que correra quando, cheio de maneiras, disfarçava seu temor experimentando gravatas.

Tudo correu satisfatoriamente. Seu diretor saiu-se bem, pode se dizer que brilhou. Admirava-o por isso, por saber atrair para si glória e reconhecimento sem despender grandes esforços. Fez lá suas anotações, solicitou uma cópia da gravação da audiência. O gesto de pálpebra quase imperceptível do diretor abordava-o. Queria saber de seu assessor como foi a performance. A resposta era um meneio rígido e vertical com a cabeça, sinalizando um entendimento de que foi positiva. Palavras agradáveis, sorrisos enfardados, apertos de mão protocolares, davam a deixa: era o fim de mais uma baixa comédia.

Com o corpo hirto, retornou ao hotel. Trocou de roupa, para ficar mais à vontade, arrumou suas coisas na mala, por último a ordinária gravata. Fechou a conta e dirigiu-se logo ao aeroporto. No caminho, a paisagem do lugar desconhecido embaralhava sua retina. Embora houvesse certo dissabor em aturar o fingimento de todas as coisas, em passear pelo poder ciscando um ciscar vagabundo, não fazia isso se queixando dos grilhões. Na verdade, via certa liberdade em aquiescer, e foi dispondo dessa licença que pagou o táxi e desceu com as malas. Sua maior vontade naquele momento era chegar o quanto antes em casa, refazer suas forças, serenar-se no único lugar realmente seu. No salão de embarque, o painel de partidas e chegadas indicava que o seu vôo estava atrasado.

Cartoon - João Zero

Marcadores:

sexta-feira, setembro 21, 2007

Tartaruga imigrante

Ela passeia imóvel pela cama de hóspedes. Parece ter feudos nas patas, de um verde espinafre, com estrias delimitando fronteiras. Um pedaço que lembra a Hungria a imagem e semelhança de um morcego; outro com contornos de uma lasca de barra de chocolate partida com a mão logo após ter saído da geladeira. A tartaruga, sobre a colcha, não reclama, não esperneia; só confunde os traços, acena e adormece.

O bom de viver lenta é poder parar totalmente sem ser notada. Suas patas brilham a história digna e indigna, a múltipla ignorância, a vassalagem de quem não sabe se é réptil de água ou de terra e que, por ter morado muito tempo em quintal de cimento, dependeu da alface que vinha da mão de um garoto maneta para se manter. Hoje vive em cima de uma cama macia, preparo quente para receber os amigos.

Seus cascos impressionam, esverdeados também – diferente das patas. Não são o espelho do espinafre, estão mais para uma arara multicolorida que de tanto bater e pousar asa ficou verde. E é assim que a bela imigrante festeja o modo como carrega os territórios desunidos e as transformações plutônicas: exibe-se.

Marcadores:

segunda-feira, setembro 17, 2007

As coisas sem nós



Cada casa tem um penteado
A árvore peruca
Aquele prédio está careca
E o chão...
No chão as coisas correm
A gente toda imita as coisas
Dentro da gente existe chão
Veias-estradas
Os órgãos mini-seres acoplados
Na cama dois portos trepam
Pelo prazer de viajar
Ou
Pelo compromisso de
Fabricar um chip de carne e osso
Enganchamento de colo
De colosso
De pele saltitante raiz de amores endividados
De química exaltada
Sem pano e sem planos.

Marcadores:

quarta-feira, setembro 12, 2007

O diário dos homens obsoletos – parte 3


Ah, enfim a carta. Há quanto tempo não nos vemos, há quanto tempo... Caio abre o envelope, mãos suadas de ansiedade. Antes atenta para o desenho, as letras formosas, a tinta firme sobre o papel. Tem um cheiro suave que contradiz a distância dos últimos tempos. Exala Glória! Exala desta carta a nossa insanidade, as mandíbulas eretas da embriaguez. Sim, minha companheira, joga-me no olho da tua cuca, que vive a beliscar os segundos cristalinos. Afoga a saudade a me maltratar feito sede no deserto.

Foram dois anos de espera, alguns breves telefonemas, horas e horas de Messenger. Glória reclamava do frio na Alemanha; Caio da falta de dinheiro no Brasil. Se tivesse muito, estaria lá, visitando-a, esfregando-se, enfiando a cara na neve, inéditos saracoteios. Mas sua raquítica carteira mal permitia comprar uma paçoca na barraca de doce da esquina. Enfim, tinha mesmo de se contentar com a lonjura, que só se fazia perto quando, íntimo de si, tocava-se quase à beira do abuso.

Uma vez, em pleno almoço com os colegas de trabalho, cada qual com sua marmita, sentiu o corpo chamando Glória. Correu para um canto qualquer, o volume grosso da calça, a mão apertando a ponta do bicho. Foi pra detrás de um carvalho, fingiu descanso e despejou sementes viscosas ao pé do tronco. Voltou mole, para dar fim à comida, a gente toda perguntando o que Glória foi fazer na Alemanha e Caio sem saber explicar necas nem canecas.

Depois de inflamado o peito, Caio lê as palavras de Glória: “Querido, não consigo mais suportar essa dor, não posso continuar escondendo de ti, que tanto me ama, a grave falta que cometi. Ofereceram a mim uma proposta impossível de recusa. Um alemão, cheio da nota, parou demais na minha e me pediu pra ele. O sustento vai me dar paga inclusive do fato de ele ser feio, barrigudo e ter mau hálito. Você precisa ver a casa do Dürer, do jeito que sempre sonhamos, mas nunca, nunquinha, iríamos ter.

Por isso, estou te largando. Peço-te perdão por ter te feito trouxa, mais uma vez. Também não te convido para a festa de casamento porque seria humilhar-te demais. Quero que saibas que fui feliz contigo, mas tu não me mereces, pois, no fundo, sou uma ordinária”.

Glória despedia-se com um beijo “encharcado de culpa”. Estranhamente, Caio não esboçou uma reação sequer, embora sua face fosse rocha. No dia seguinte, pegou a carta, foi ao carvalho das sementes viscosas. Tinha marcado a árvore, a prego, com o desenho dos corpos, os nomes dos bois e duas bandas de coração. Foi ali que rasgou a carta e chorou.

Marcadores:

sábado, setembro 08, 2007

Revista Malagueta


Hoje o post é pimenta e a ardência é coletiva. Clica nesta imagem aí em cima e vai lá ver como é bom e vermelho. Aproveita também para bater uma bola com o pessoal da Copa de Literatura Brasileira. Eu estou lá, no meio da sexta edição temperada por gente que cozinha bem à beça. O banquete é pra ti também, o banquete é pra ti também, o banquete é pra ti também!

Marcadores:

segunda-feira, setembro 03, 2007

Queijinho pra mortos


Em vez de comprar frutas e queijo no supermercado, decidi fazer isso nas mãos de dois velhinhos. Frutas no Seu Mauro, que tem barraquinha montada na entrada da quadra; queijo no Mineiro, com sua lojinha simpática a poucos passos de minha casa. É uma forma de brindar dois sujeitos aparentemente encantadores e dotar de alguma pessoalidade relações que em geral costumam ser tão distantes e automáticas. Assim, uma ou duas vezes por semana, estaria assegurado um contato menos previsível, mais saboroso, e quem sabe adiante, eu virando freguês, contaríamos histórias uns para os outros.

A primeira experiência com Mauro foi em um sábado muito bonito de sol. Comprei bananas, morangos, seriguelas e pêssegos. Compra gorda, via-se pelo sorriso do velho. Mauro parece ter um defeito na perna, não chega a andar com dificuldade, mas caminha lento e arqueado. Puxo assunto.

- Há quanto tempo o senhor vende frutas?
- Desde que me aposentei, tem uns cinco anos.
- Essas frutas estão com a cara boa.
- Ele riu - E fruta tem cara?
- Parecem frescas, quis dizer.
- Sim, a cara boa é a cara da frescura – e deu outra risada, desta vez mais prolongada. Não quer levar também um limãozinho?
- Não, obrigado.
- E estas maçãs? Estão com a cara ótima.
- Não, maçã eu já tenho em casa.
- Um cajuzinho, leve também um lote de cajuzinho...
- Eu não gosto de Caju. Quanto é? – pergunto para estancar o jogo de empurra de Mauro.
- Trinta reais.

Preço salgado acrescido da chatice de insistir em que eu levasse aquilo que não queria. Melhor seria voltar a comprar frutas no supermercado, às quartas, que é quando tem promoção? Bem, aproveitei o embalo e fui ao Mineiro. Lá, comprei queijo minas e queijo manteiga. De quebra, um pote de doce de leite e outro de doce de tamarindo. Com o Mineiro, não deu nem tempo de iniciar conversa. “Prova desse quebra-queixo, é uma delícia. Não quer levar mais meio quilo do de minas não? Olha, se eu fosse você, eu levava também essa cachacinha... dizem que ela deixa o homem aceso que é uma beleza...”

Para continuar a comprar no Mauro e no Mineiro, desenvolvi uma tática muito especial. Entro na loja fingindo pressa e com ar ofegante; no caso de Mauro, chego correndo com o carro, dou uma freada brusca, saio rápido e bato a porta com bastante força. Digo tudo o que quero com uma ligeireza de fazer inveja a narradores de corrida de cavalo. Pessebanamoranguela. Eles ficam doidos, querem ser mais ágeis que a minha fala. Enquanto eles arrumam a mercadoria, calculo por alto o preço, sempre um pouco para mais. Sacola na mão, entrego a grana, lanço um “fique com o troco” e me mando a pinote.

Dia desses, depois de todo o meu ritual inventado de lufa-lufa, o Mineiro me segurou pelo braço.

- Tenho que ir ao enterro de uma grande amiga que é daqui a meia hora – disse rapidíssimo antes de ele me fazer sua oferta.
- Você não quer levar esse queijinho parmesão pra ela?

Juro que pensei em nunca mais voltar a olhar para a cara deste bom homem.

Marcadores: