domingo, julho 29, 2007

Ecos da Terra


O solo maquinado às pencas
engole as mãos cascosas
em serras encaroçadas, planícies esgarçadas,
emurchecidas pela tirania cítrica
da ganância agrária, dos desastres climáticos.

São hectares de conflitos irrigados
por líquido avesso à própria substância
um furacão de gotas creditícias
a juros férteis
adubando o camponês com o campônio.

Planos cafeínos,
sem açúcar, sem um doce gesto rústico,
alimentando tratores de politiquice,
desnutrindo a humilde esperança
de reviver a terra seca como herdada.

Desde o pau-brasil, capitanias, sesmarias,
terras pombalinas, donatarias citadinas...

Diante de agressiva conjuntura,
resta levar fumo, plantar batatas
a cólica coivara – grito do órgão oco
que se entorpece com o enxofre
das sevícias exaustivas
no campo minado das batalhas.

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quarta-feira, julho 25, 2007

Uma boa dose de misantropia


Wandering Rocks, de Paul Joyce

Estou com um profundo sono, uma vontade imensa de dormir da chatice. De não mais olhar para os sorrisos feitos para as rodas, cheios de sentido social, que se amontoam para celebrar a união dos solitários. Lábios e bochechas cristalizados, de gente que não se assume, daquele tipo de gente que inventa o mesmo porque não agüenta os próprios destemperos.

Como vêm se tornando insuportáveis os egoístas bacanas, em torno deles uma claque bebericando as piadinhas mais sem graça, a inteligência mais sofrivelmente cínica. Enchem-me de desejo por letargia as celebridades de quarteirão, sempre prontas para dar as últimas, as novas, para forçar demonstração de afeto aos supostamente importantes. Juntas formam uma alta sociedade decadente e chegam a cometer o crime de forjar a história dos lugares a fim de manter o verniz de suas poses.

Salve-me, apatia, dos sedutores chinfrins que fazem mogangas elegantes, arranjam lábias graciosas, das mais manjadas, com o descaramento de apresentá-las como se inéditas fossem. Quero sedar-me da ignorância dos que jamais olham para dentro com honestidade, sempre a postos diante da volúpia que lhes oferece engano e simpatia.

Cobiço abraçar-me à indiferença a toda rede social convulsa a se debater pelo selo da antena, o carimbo da articulação. Desdenhosos da introversão, despreparados para as delícias da intimidade. Apeteço ardentemente a indolência, a preguiça robusta daqueles que transformam situações mesquinhas em um poço particular de poder, deslumbrando-se com pouco para navegar em uma superioridade artificial.

Sim, quero hibernar profundamente em solidão e silêncio, sentir o metabolismo desacelerando até o instante em que minhas reservas alimentares sirvam apenas para me aquecer. Minha vida se resumiria a isto: calor e repouso. E lá fora seria apenas um jardim de homens murchos.

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sábado, julho 21, 2007

Os dedos de um costureiro


O corpo de Inácia tinha um brilho de cera e estava exposto àquelas mãos sábias de costura. Ele a percorria aflito, pois cada curva da amada era o desenho do desinteresse, as linhas apuradas da frieza, até mesmo de certa antipatia. Revelava também outras pegadas, rastros de outras mãos que o inculcavam. Que tipo de ousadia se fez por ali? Alguma quimera, que não fora a dele, gemeu e esparramou-se. Para ele, o olhar encurtado, da sobra dos dias; a carne acanhada de tanto desfrute.

Toda noite, ele ia para frente da janela de Inácia para vigiar as entradas e saídas, quem chegava e dormia, quem dava uma rapidinha, quem a fazia gargalhar, quem lhe brindava com mais êxtase. Quando não aparecia ninguém, ou quando quem dentro estava sumia, ele se aproximava, com suas mãos sábias de costura, para tentar remendar aquele corpo e reutilizá-lo. Embora a amasse profundamente, não poderia esperar um só pra si.

- Eles pagam pelas minhas coxas, pela maciez da minha bunda, pelo calor daquilo que perseguem. São tontos e fáceis de ser enganados. Alguns dão certa dignidade ao ato, mordem de arrepiar, usam bem os dentes. Mas a maior parte vê o manjar na frente e não sabe por onde começar.

Por vezes Inácia o sangrava assim, fora da cama, com sua filosofia resoluta.

- Não posso me deixar possuir pelos braços da tolice. Eu não sou desses homens. Eles apenas me querem e me pagam. E o que recebo se desmancha, ali mesmo. O que recebo é só costume.

Ele ouvia a dureza de mais uma impossibilidade. Como ser picante, causar comichão se era banguela? Seus dentes postiços de nada serviam, pois o que é postiço não pode fazer tremer. Assim acreditava, assim ria-se, num riso de desgoverno.

Suas mãos também. Inúteis, apesar de Inácia estar linda no vestido que ele fez para ela. O corte, que valorizava as costas agudas, oferecia contornos elegantes à pele morena, tão esplêndida e tão arredia àquelas mesmas mãos. Mãos hábeis e insuportáveis. Pensou em cortá-las, jogá-las fora, em um rio repleto de piranhas que as trucidassem. Agarrou-a, feroz como jamais estivera, com a memória apagada, com dentes nos dedos. Inácia, que só recebia costume, desta vez acolheu a surpresa. O pêlo eriçou na mão que mordia, na mão inventada, mais forte apertando, mais forte assumindo o território. Pegou pelo cabelo, por trás, atochou tudo, latejando. Era prazer e era culpa pelo atraso. Ouviu o gemido inédito, de um corpo ainda não totalmente despido. A carne que balançava a cada estocada, o vestido que ele fez para ela, o vestido que ele fez para ela.

- Onde você quer que eu enfie a minha mão?

Inácia pegou a mão dele e colocou em seu clitóris. Pelo espelho, ele via o reflexo dos olhos viradinhos. Era Inácia traindo toda a sua filosofia.

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terça-feira, julho 17, 2007

Com quantos fios se faz um ambiente?

Estou no centro da sala. Na minha frente uma bela imagem se derrete em uma tela de fusões e cores. São os olhares dos outros, estampados para mim, em alta definição e vibrando acordes em um sistema de som integrado. Filmes que minha amada fez, mas ainda não viu.

Saio do centro e vou para o canto. Lá, o som goteja suor em lá maior. A imagem reflete em diagonal para que eu possa namorá-la de outro ângulo. O passarinho canta e eu escuto até as sombras de seu canto. Todos os entulhos fora. A arte está ali e eu nem preciso de pipoca. Nem de refrigerantes. A mim basta o mundo que vejo da barriga de um cubo.

No chão da sala e nas paredes, fios e mais fios. Conexões entre o receptor e as várias caixas que vão dar nele. E cabos e antenas e fitas e pregos e prendedores. Trabalheira que resulta em caos e brilho. Para onde quer que eu aponte o meu olho, estará diante de mim algo atravessando algo. Seja fecho, fio na parede ou riscos do mau acabamento do móvel novo.

Móvel novo que está servindo para muita coisa. Nele, guardo os aparelhos e instrumentos possuidores do power que aciona o meu mundo mágico e das páginas impressas do tipo de calor que mais me interessa. E ainda tem a elegância de guardar tudo sem ocupar muito espaço. Lindo e low profile.

No dia em que deixarem de inventar as coisas, eu me mudo para Júpiter. Vou viver numa imensa bola de gás e morrer de frio.

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quinta-feira, julho 12, 2007

A velha na grama

Amor, eu te agradeço. Por me habitar sublime. Por me arrancar da cama. Por me mostrar semana possibilidades. Vem assim, chama e quintal – feira de tomate e carne. Vermelho, vermelho é o amor. Que ignora os termômetros, que atrasa o juízo para dar um passo a mais para a alma perneta. Sou aleijado, sou a febre do futuro. E tenho medo porque de santo não tenho nada.

E de santo não tenho nada porque cada luz é um tormento. E como Adoniran cantou: de vez em quando a luz da Light pifa e a gente apela pra vela. E muitas vezes o jeito é sambar no escuro. E entre amarelo-branco e trevas, cada dia me visita, faz sacolejo.

Hoje eu vi uma velha deitada na grama da capital. Parecia uma rainha, uma deusa engelhada. Grama e velha secas pelo castigo do sol, pela aventura de se expor ao tempo como um desejo ausente. A velha cocegava na sola do pé do meu olho que, sem reflexo, dormia, mas nem por isso eu deixava de ver. E era como se toda a secura dormisse junto, numa espécie de solidariedade insana. E eu me vi poste apagado, sem vela e sem velha. Fui pra casa e chorei.

Eu penso que a vida é uma arte. Uma arte cheia de amor. E amor é graça, brandura, mas também é tristeza. Amar é ter coragem de ver, saber que o choro não representa o fim de nada. Apenas molha a terra da alma, para que faça brotar o sentimento do mundo.

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domingo, julho 08, 2007

Aos leitores

Prezados,

Ultimamente, andei recebendo prêmios, simbolizados por selos criados por algum ocupante da blogosfera. Então, já me ofereceram duas vezes o Blog que Faz Pensar e outras duas o das Sete Maravilhas. €aµ (duas vezes), Bárbara P. e Erika são as três leitoras que me premiaram. De acordo com as regras, eu teria que premiar mais cinco, no caso do Blog que Faz Pensar, e outros sete, no caso das Sete Maravilhas. Simplesmente, não consigo. Por isso, também não coloco os selos no blog. Mas agradeço a escolha.

E o lance de ser uma das sete maravilhas da blogosfera? Merclux agora é uma espécie de Muralha da China, Taj Mahal, Cristo Redentor. Bloco de pedra de calcário e granito, com portas e torres, bandeiras coloridas e sinais de fumaça e fogo. Lápis-lazúli, a maior prova de amor do mundo, de braços abertos sobre a Guanabara. Viva!

Então, este post é dedicado às três e a todos os que vêm neste espaço passear pela floresta de mercúrio. Pelas tronchuras assanhadas, metáforas de primeira e de última hora, invenção acalorada que sai de trás dos montes, delícias que dispo a partir de tudo o que não suporto.

A vocês que dialogam com meus saltos e tentativas, meus altos e baixos teores. Com o amor da entrega, o carinho que a palavra significa para mim, o derrame em busca da superação. A vocês, a minha satisfação em tê-los aqui.

Terno abraço,
Guto Melo.

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quarta-feira, julho 04, 2007

Chocolate quente

Quero falar deste copo. Deste copo que abriga este líquido quente que vou beber agora. Ele contém uma temperatura a ser engolida. Sou eu o monstro, com a língua manchada de sebo, de tanto que desgovernou, quem irá tragar o apetitoso. É o chocolate da vida que se apresenta. Eu só faço cheirar antes, pra sentir a quentura já nas narinas.

Do copo ao corpo. O líquido desce pela garganta lento e macio. Talvez seja o costume de beber o calor. Este líquido é um sentimento, caldo de prazer e desconforto, volúpia abrasante de medos e sonhos. E está neste vidro cilíndrico, parecido com o que eu quebrei ontem. O copo contém amargura, infância feliz, brigas, explosões, luzes e amêndoas, que caíam da árvore na calçada em frente à minha casa antes de eu me desapossar. Marcavam o chão, chamavam as formigas. A raiz da árvore arrebentou a calçada, rachou o muro, invadiu meu espaço. Tamanho agito para que as amêndoas ficassem mais nobres.

Amêndoas também são os olhos dela, que me olha doce. Às vezes me olha arredio e me sinto só. Aliás, solidão é coisa minha desde que comecei a calçar 33. Descobri, olhando para o pé, que eu poderia ser o que quisesse desde que optasse por ser só. Então, tanto faz o jeito que ela olha pra mim. É amêndoa e não me fere.

Estou na metade do que o copo me oferece. Meu corpo se esquenta. O que entra em mim, entra escorrendo. A essa altura, já sinto tudo morno, acomodado. Em pouco tempo chegarei ao fim e, como sempre, com a mania de olhar para o fundo do copo depois de ter ingerido tudo. Mais uma vez, ver o copo vazio e embaçado, com restos grudados nele, à espera de água, esponja e detergente. Dentro de mim, os ácidos quebram as coisas tristes que ouvi e as noites iluminadas que respirei. O chocolate da vida se divide em várias partículas que vão me nutrir e me deixar esperto. É assim: o sabor se transforma em sustento. Estou teso, tesudo, adoravelmente quente e alimentado. Pronto para mais um copo.

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