terça-feira, janeiro 30, 2007

Mas e Eu?

Climas de despedida nunca são confortáveis, ainda que o aceno ensaiado já fosse um tanto esperado. A sala está sendo desmontada para uma outra ocupação, sabe-se lá qual. Os homens lá fora quebram o piso como coadjuvantes não alertados de uma telenovela cheia de troças e secretas observações. Tum, tum, traaaaac!!! O que se ouve é a trilha sonora do desmoronamento. Parece até que há uma dívida não quitada e a zoeira vem meter na sepultura todas as lembranças de pagamento. Acabou, é hora de partir. E se as pessoas naquela sala conhecessem o Crocodilo, veriam o trator que vi, a parede desabada que vi e a falência levantando da cama com cara de susto.

O mais degradante são aqueles plásticos pretos, que supostamente existem para proteger computadores e móveis da goteira. Eles cobrem as máquinas e a madeira. Eles são o estandarte da morte de toda operação. A diretoria decidiu e ponto. Não tem nada que vir diretor explicar o que a gente já sabe e depois, com cara de leso, perguntar se alguém tem alguma coisa a dizer. Ele não viu os plásticos nem o terraço lá fora, onde o quebra-quebra acontece. Pra onde eu vou? - cada um de nós questionava pra dentro. Trabalhar com fulano eu não quero; com ciclano eu já sei como é. Para alguns o destino aguardado é a rua. Ninguém oficialmente diz nada.

A última reunião, como todas as que houve, foi um palco de martírios. “Olha, eu queria te dizer o quanto aprendi com você e o quanto você me fez crescer...” “Mas você... você tem muito potencial. Aonde quer que vá tem futuro...” “Loirinha, meu anjo. Eu era como você, a mesma irreverência, a mesma alegria. Vê se lá na frente não se torna este traste falante, viu?...” “Hei, você, menino que escreve... você é um mistério para mim, me atrai, mas... não sei dizer... você é assim... amorfo...”

Uns inquietos, outros atentos, ouvíamos as considerações finais da comandante degenerada, que aproveitava as sobras de sua autoridade para tentar convencer a todos de sua excelente perspicácia. No final, após duas horas e meia de uma surra de conversa, ela ainda queria mais assunto: Mas e eu? Vocês me amam? Amamos, amamos muito, amamos demais! Impossível ser dada outra resposta.

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domingo, janeiro 28, 2007

Um Trago na Dúvida

Ando sentindo dores. Há anos é assim. São dores de estômago, intestino, de digestão. Às vezes minto, digo a mim mesmo que não tenho dor alguma. E às vezes acho que essa coisa alguma é livramento. Será isto mesmo? A mentira é nossa doce salvação? Tem dias que até um copo d’água me ofende. Em outros, como porco e parece que o que comi foram folhas de alface. Se fosse grave, já teria sido arruinado, pois o tempo não suaviza nestas horas. Então, o que existe de fato são insultos, afrontas e mais nada.

Convicto do meu estímulo e da minha imagem, puxo um cigarro da carteira e acendo-o. Cada cigarro que fumo é um voto de confiança em Deus. Fumo pouco, para não confiar demais. Não é por descrença. Mas sim para poder continuar desconhecendo-o e mantê-lo mistério em minha vida. Houve um tempo de eu não acreditar mais e as dores eram mais fortes. Castigo não era. Havia sim, no meu abandono, uma forma lancinante de carinho. Fumava horrores – excesso de confiança. E nesse abuso morava a minha fé abalada, fruto de uma intimidade forçada e da rispidez do impulso, já que só consigo ver Deus como ente secreto.

Nesse tempo, trabalhar era o meu calcanhar de Aquiles. Mergulhado em um rio de dúvidas, eu não tinha tempo para lavrar. Perdia horas sofrendo com as travessuras de minhas metas inatingíveis; outras horas intermináveis em querer e não querer tudo o que para mim estava feito – sim, estava lá, à minha espera, de olhos vivos e brandos e tudo o que eu conseguia fazer era não suportar. Vez por outra me punha a sentir raiva daqueles que irradiavam a sua sobranceria, das pessoas opacas que por ignorância não sabiam reconhecer esplendores.

Mas por bem, mesmo em momentos de estúpida fragilidade, se é capaz de alimentar máximas defensoras com aquilo que resta de ileso. E que tudo passa, passa. E sempre passará. Os dias teimosos insistem em negar; o princípio livre dá o sopapo que os dias merecem. Hoje as dores de digestão que sinto são trôpegas. São como visitas de saudade. Afinal, dentro de mim a fervura as atrai. Eu é que não caio mais nessa.

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sexta-feira, janeiro 26, 2007

Baia em Obra

Certa vez Adoniran, cansado de sua baia, olhou para o teto em obra e sentiu desabar um céu de goteiras com nuvens descascadas. Fez uma breve exaltação de si para si - pedaço de Deus latente jogado no planeta, pêndulo humano, troço-anjo.

“À toa e a todos. Quero brindar-me desmesuradamente: com indignação elegante e brilho lépido em olho de pérola. O amor me diz que começar mais uma vez é sempre possível. E diz baixinho, ao pé do ouvido, por saber que os arrepios me consolam.

Adiante, os meios dos anos estão vivos. As várias metades. As bandas de terras ainda não descobertas. As marchas do espírito, a poesia e a tirolesa. E lá no cume da minha estatura, existem niños de sol; amarelos feito um império oriental, vermelhos feito agora.

Como é bom poder viver a glória de ser único. Quantas paradas ainda virão? Quantos sustos e tropeços? Não sei contar queda nem dinheiro. Só aprendi a calcular na matemática do desejo: a conta nunca bate; a prova dos nove é pura tolice; o resultado inexato é o lustre da incógnita. Cálculo que me deixa nu, jeito mais gostoso de ficar neste mundo.”

O barulho da obra vem de marteladas em cimento. Uma reforma para sustar o fluxo corrosivo. Adoniran se agarra nas raízes do futuro. Ele é um bicho invocado que tem o suor ácido, a mente tarada e a alma banhada em sonho.

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quarta-feira, janeiro 24, 2007

Marchemos! Que o Tempo Cospe Balas...

Um dos meus poetas preferidos é Vladimir Maiakóvski. E tem um poema dele, dentre tantos outros, que embora seja trágico eu acho maravilhoso. Chama-se A Sierguéi Iessiênin, homenagem ao poeta russo homônimo da mesma geração de Maikóvski.

O poema em questão é uma réplica a Último Poema de Iessiênin, escrito por Sierguéi em 1925 no momento em que cortava os pulsos em um quarto de hotel em Leningrado, hoje São Petersburgo. Como pano de fundo, a Revolução Russa.

Cinco anos depois, Maiakóvski também se matou com um tiro no peito. O autor influenciou toda a poesia russa moderna, com seus épicos e sátiras marcantes. Escreveu ainda ensaios, artigos, peças de teatro e roteiros para cinema.

Abaixo, os poemas. O de Maiakóvski está como link porque foi o único modo de respeitar a formatação original.
Último Poema de Iessiênin

Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.
Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

(Tradução de Augusto de Campos)

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domingo, janeiro 21, 2007

Até Nunca Mais

Quando não se dá conta das coisas que não pertencem mais; quando o que foi pequeno um dia se lacera e se transforma em prodigiosa mancha de óleo. A aventura denuncia uma inveja que não cabe; a malícia em sabotar a alegria alheia com o próprio medo – as conquistas são sujas, sabe? - pareço ouvir. Elas não prestam pra nada – e há de se ficar mesmo é no médio-medíocre-mediano. Ele não. Ele pode repetir os mesmos projetos que deram em dor. Recasar, ter a juventude ilustrando as velhas intenções. Mas sem pegar carona na juventude. Ele a amordaça para poder viver melhor.

Ganhar dinheiro é o que nos resta. Compra a nossa miséria. Olha lá! O outdoor! Está dando mole, mostrando as coxas. Mistério e magia é para quem não tem lamúrias. É para quem sabe lamber vento e suar as próprias contradições sem vestir capa de verdugo. Por uma consciência defeituosa, eu amo, trepo, faço horrores, abraço as minhas paralisias e chupo. Mas não me caço, pois afrontar a si muitas vezes resulta em traição.

E quem sabe um dia ter condição de avistar de cima o lá embaixo bem enorme, como se perto estivesse. Quem sabe até rodar bem velozmente e cair em destonteio ou fazer da tontura o bombom que evidencie a polpa dos lábios. Sem fuga, sem despreparo e sem desespero. Apenas um jardim de sonhos, vivos e reais, como o rosa celeste da noite cheirando a tóxico. E sem medo, a entrega: estar nas mãos de uma navalha alada degolando o diabo e o ciúme.

O apego é uma penúria. Nem quando Ele me esquece Ele me desagarra. Nós para quem não tem dentes. Quilos de amargura, de esperança puída. Servir e servir é o modo pleno que Ele encontra para existir na face deste planeta. Mas eu sou aquele papagaio que aparece no final do filme para fazer companhia a um Macunaíma sem dentes. O nosso herói mau-caráter desatou todos os nós até ficar banguela. Daí para a morte foi um pulo na boca de Uiara mãe d’água, piranha voraz.

Então, a voz é uma tentativa de intimidação... é preciso espantar este horroroso maledicto. Vá se foder, autoridade de biltre! Vá se foder, honra encasquetada! Vá se foder e muito! O absurdo não está no traslado mas na fixidez. E depois de afugentar o ensaio Dele - a querença de infiltração – posso dizer: vou sumir, até nunca mais!

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quarta-feira, janeiro 17, 2007

Um Tiro na Impostura


Paulo Coelho é o novo colunista do G1, site de notícias do Globo.com. Em sua primeira coluna, intitulada Brevíssima História da Medicina, o escritor e membro da Academia Brasileira de Letras faz reflexões sobre a cura ao longo dos tempos, conforme anuncia a chamada. Abaixo o texto:

“500 D.C. – Venha até aqui, e coma esta raiz.

1.000 D.C. – Esta raiz é coisa de ateu, faça esta oração ao Deus que está no céu.

1.792 D.C. – O Deus não está no céu, quem reina é a razão. Venha até aqui, e beba esta poção.

1.917 D.C – Esta poção é para enganar o oprimido, sugiro que você tome este comprimido.

1.960 D.C. – Este comprimido é antigo e exótico. Chegou o momento de tomar antibiótico.

1.998 D.C. – Antibiótico te deixa fraco e infeliz. Eis um novo tratamento: coma esta raiz.”

Acontece que esse texto não é de Paulo Coelho. Ao que tudo indica é de autor desconhecido e andou circulando por e-mail. Causa indignação ver um escritor tão badalado e, hoje, tão representativo de nossa literatura, fazer um Ctrl C + Ctrl V e se passar por filósofo de um modo tão deslavado. Aliás, signos vazios parecem ser o material mais apropriado para os editores espertos que estão nos veículos de grande porte. Afinal, quanto impacto, explosão e caricatura tem no embuste o seu campo de cereais. E como vende a impostura.

E vende porque a aparência de felicidade deve ser a todo tempo. E porque muitos caminham com o combustível da preguiça. Felicidade é ser sábio. Mas sabedoria dá trabalho. Nada que livros de auto-ajuda, um kit de frases de efeito, arquivos ppt e uma memória razoável não resolvam. A comida já vem prontinha. Gravar a gororoba não é tão difícil.

O Gerald Thomas, na ocasião em que estava exibindo Ventriloquist no Rio, foi provocado em uma entrevista. A peça tem um personagem impostor e o repórter perguntou se ele, Thomas, se considerava um. Ele disse que sim, que dentro de um sistema de impostores não-assumidos, a única dignidade seria se assumir um impostor. Muso-franco esse Thomas, hein? Carioquino, bem diferente do PC Farinha.

Voltando à coluna de Coelho. Impostores assumidos pintaram seus comentários: o internauta Raul Seixas dizia “Sou eu mesmo...” Outros faziam seus gracejos, chamavam o PC de “Marte da literatura brasileira”. Houve ainda quem completasse o texto: 2007 D.C – arrancar raiz machuca o pé e dá bolhas, que tal fumarmos estas folhas (ou algo do tipo). Só mesmo o humor para me fazer esquecer a idéia de dar um tiro na impostura.

Seguem aqui alguns links onde é possível encontrar o tal texto, originalmente sob o título Breve História da Medicina. Paulo Coelho teria então contribuído com um retoque superlativo.

Os links
http://www.ervax.com.br/
http://putadevida.weblog.com.pt/arquivo/2005/03/breve_historia
http://www.esalq.usp.br/siesalq/pm/uncaria_tomentosa.pdf - página 17
http://br.groups.yahoo.com/group/pnlbr/messages/8201?viscount=100

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Morte de Dédo

Foi com muita tristeza que hoje recebi a notícia do falecimento de Mestre Dédo. Pescador, músico das sambadas e figura querida, era um dos expoentes do Coco em Amaro Branco, Olinda (PE), doce cidade em que vivi antes de vir para a capital. O que mais me doeu foi a forma como ele morreu.

Dédo bebia com amigos na Colônia Z4. Dentre eles, um pescador que estava em liberdade condicional. O cara se alterou e começou a bater na namorada. Dédo foi apartar a briga e levou uma facada no pulmão. Foi socorrido, mas chegou ao hospital sem vida. Detalhe: Dédo ajudou a retirar da prisão o pescador que o assassinou.

Covardia da mais torpe. E mais uma vez essa coisa suja leva a bondade e a generosidade para o túmulo. Isso é coisa a se repudiar. Mesmo. Pelo que acompanhei daqui, à distância, o enterro foi bonito, com homenagens e muita gente. Eu não conheci o mestre pessoalmente, mas presto com este texto a minha singela lembrança.

Dédo morreu no domingo e foi enterrado na manhã de ontem, no cemitério Guadalupe, em Olinda.

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terça-feira, janeiro 16, 2007

Para Aonde

- Alô
- Oi, que surpresa você ter ligado!
- Como foi de viagem?
- Bem. Choveu bastante. Antecipamos a volta, mas tudo correu tranqüilamente.
- Eu também vou viajar.
- Pra onde?
- Pra longe.
- Sinceramente, você acha que isso vai acrescentar alguma coisa na sua vida?
- Acho sim. Muita coisa.
- E se chover?
- Se chover, eu vou para o meio da rua tomar um banho de peito nu e cantar ¿Dónde Estabas Tú?

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domingo, janeiro 14, 2007

Do Excesso e da Falta de Luminosidade

O dia começa com os mesmos traços do marasmo. Em um canto, um rosto deformado pelos antidepressivos; em outro uma vaidade míope que se recusa a usar óculos. Ao centro, um sujeito com idade um pouco avançada que insiste em fazer piadinha de tudo e divertir pessoas que ele jura não suportar.

Todos conversam. Soltam suas pelancas e risos miúdos. Mantêm a pose de bons amigos. Afinal, estão em um barco com motor chumbado e comandante flácido. À deriva, precisam fingir o tempero inexistente e transformar frustrações na acetona que fará bem às suas tintas.

Ao longe, dois rapazes observam: um é surdo e o outro não. O primeiro está salvo pela própria deficiência; o segundo parece inquieto e anota alguma coisa em um pedaço de papel. Seria uma bela fotografia, se não estivesse sobreexposta.

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O Lado Bom do Escuro

São eles. Os andaimes voltaram. Depois da reforma da fachada do prédio onde moro, que durou incontáveis furos de britadeira e intermináveis visões de um véu verde sobre o ferro montado, eles estão de volta e em frente à janela do quarto onde surro o teclado. Eles são feios, grossos e me dão a impressão de que a qualquer momento irão invadir o apartamento e tomar conta de tudo. Não me deixarão circular pelos aposentos, não permitirão ao menos aquela sesta que costumo dar após o almoço, sobremesa e descanso para o corpo.

Talvez me expulsem. Esses andaimes lesam o que vejo do céu, se colocam entre mim e qualquer coisa. Imponentes e desnecessários, seguem com a missão de atrapalhar, de pôr terra e cimento em minhas delícias, no gosto que tenho em observar amplitudes, em ver o mundo se abrir. Ontem eu evitei a janela para não cruzar com o dito cujo. Hoje, mais desencanado, o encarei, mas confesso que a vontade de desmontá-lo ainda não passou.

Para completar, a lâmpada do quarto queimou na madrugada de ontem. Fiquei escrevendo no escuro. Ruim para a vista quando olhava para o computador. Bom para a vista quando olhava para os andaimes.

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quinta-feira, janeiro 11, 2007

Zanga Ligeira

Não me venha com este papo de que é para melhorar as coisas. Logo você, que lança sorriso atrapalhado porque não entende nadica de nada de sinceridade. Comporte-se. Como pode querer o bom se em seu peito habitam os tratores que atropelam a fantasia? E se você pensa que o ímpar é desleal, como pode traduzir meu sal e meu iodo?

É no mar que sou mais menino. Mas Brasília não tem mar. Então, o que posso fazer para me banhar de infância? Eu posso beijar o meu amor, pegar na mão dela e dar um passeio pelo parque. Olhos d’água o nome do parque. Água doce, mas lá tem bastante criança.

Agora se aproxima a hora de dormir. O sono é menor do que o cansaço. Amanhã sei que vou ter um dia chinfrim, porque um trabalho chato me espera. Por isso, comporte-se. E não me venha com este papo de que é para melhorar as coisas.

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terça-feira, janeiro 09, 2007

El Vidrio

Um medo invade por conta da coisa que pode crescer e se tornar insuportável. Soltura na alma, rugas na testa, vamos em frente que toda hora é hora de nutrir mais um pouquinho. Coração sem prato de balança é o bife mais vermelho e suculento que pulsa sonhos protéicos. Rumba toca em minha varanda-jardim. Minhas flores dançam com as sementes e com o solo. Espero que meu estômago compreenda. Espero que eu possa levar tudo o que vou precisar comigo ou dentro. Espero que as coisas que eu deixar sejam requintes da lembrança. Quero escrever tudo. E quando voltar, escrever tudo novamente.

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segunda-feira, janeiro 08, 2007

Revista Corsário

Pessoas queridas que transitam por aqui,

a revista Corsário publicou um poema meu chamado A Invenção de uma Ebulição. Tem uma galera boa na revista - Mardônio França (que é o editor), Demetrius Galvão, Ylo Barroso, Ayla Andrade, Mirella Adriano, Ítalo Rodrigues e muitos outros. Vale a pena conferir. O endereço é www.corsario.art.br. A poesia os abraça e eu também.

Felicidade a todos.

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quinta-feira, janeiro 04, 2007

O Embrulho

De manhã eu gosto de odiar o mundo para de tarde estar feito uma mula. Bem cedinho, tomo aquele banho demorado, visto uma roupa elegante e séria e ganho a rua. No ponto de ônibus, aquela menina dentuça diariamente me dá a impressão de que está mordendo a respiração dos que esperam. O Seu Domingos eu até fiz amizade com ele. Corretor de imóveis. Certa vez, perguntou o que eu fazia e eu disse que estava à procura. Ele entendeu que era de trabalho, obviamente. Mal sabe que o que faço é forjar secretamente um ritual de normalidade. O transporte vem lotado. Eu pego qualquer um. Disperso e risonho. Pois é assim que eu odeio: rindo. E odiando-rindo, exacerbo a minha preguiça.

Em uma caminhada pelo centro, alimento-me da rigidez que risca as avenidas. Os prédios são enormes e a minha ambição é do tamanho desta guimba que um suposto executivo acaba de atirar na calçada. Uma maquiagem acima do rosa sopra um odor cosmético. Viro-me e vejo um passo que não cabe no salto. Aqui e ali, corpos e gestos compenetrados. E nenhum sorriso me parece sincero.

Depois do passeio, a volta para casa, a fome e a vontade de me arrastar, de ser lento, entregue. De assumir toda a estupidez que me pertence. De não ser impostor. Um chicote me lanha o ânimo e sela em mim o fado de não viver o meu lado mais feroz, a minha fé menos covarde. Então, invento atitudes triviais. Como dar banho em Alminha, escová-la inteira e catar seus carrapatos. A cadela gosta de se espreguiçar na varanda e depois roer o osso enterrado dias antes. Alminha. Cordeira, pacata, alegre, pueril, a correr e saltar pelos batentes da casa. Vez por outra, abre a sua carne para um esgotamento violento e derrama-se em qualquer canto, com as orelhas frouxas, caídas sobre a cara. A cadela desperta mais o meu apetite do que o cheiro da comida da velha.

Minha mãe mexe a panela de feijão enquanto me olha daquele jeito superior e nojentinho. Você é um vagabundo, não presta pra nada. Cansei de ouvir. Diz que minha vida é de merda e que perdeu a esperança. Mas jamais perde a chama do insulto e da humilhação. Nas nossas discussões, falo de modo a não me mostrar abatido. Imagine, eu, com cara de despedaçado, de decomposto. Seria um prato cheio para ela, que sempre me perseguiu. Se eu permitisse que se fixasse no meu rosto a mais natural das expressões, seria exatamente a de um rosto estúpido. Mas este só aparece no espelho, quando estou só no quarto. Para ela, disfarço com uma cara de quem nega alguma coisa, de contestador.

Ruminava as meditações quando ela, fazendo-se de irritada, disse - Já ia me esquecendo. Chegou um embrulho para você hoje de manhã.

Pergunto o que há no embrulho e recebo uma alfinetada - Você é muito divertido. Quando eu me meto a abrir suas correspondências, você dá ataques e fala queixudo.

Ela aponta para o meu quarto. Vou até lá. É uma caixa pequena, com uns desenhos indecifráveis. Abro o tal pacote e dentro dele há apenas um bilhete escrito com uma letra garranchada - Encontre-me na Rua da Hora hoje às onze da noite. O que tenho a oferecer pode lhe ser bastante útil. Estarei todo de vermelho.

Que diabos alguém que eu não suponho a existência quer comigo na Rua da Hora às onze da noite? Estes desenhos... Mulheres deformadas? Pessoas mutiladas? Restos humanos? Arpão penetrando olho de bicho? Talvez não passe de um trote, mas o troço veio endereçado a mim, com meu nome escrito direitinho, sem erro de grafia.

Faltando quinze para as onze, estou no local marcado. Uma inquietude medonha me domina, acelera meus batimentos. Às onze em ponto avisto um sujeito que dá pinta de ser o do bilhete. Estatura mediana, nem forte, nem magro, e mancando de uma perna. Me aproximo cautelosamente. Ele usa uma massa de cera em seu rosto para não dar nenhuma dica fisionômica. Suando em bicas me dirijo a ele, mas antes que eu mencione qualquer palavra, sou interpelado - Lucas?
- Sim, respondo admirado por ele me reconhecer. O que você quer comigo?
- Te esclarecer
O diálogo lacônico me deixa ainda mais aturdido.
- Me esclarecer o quê?
- Sua mãe
- O que você sabe sobre minha mãe?
- Ela fez mal a pessoas que eu amava muito.
O homem vestido de vermelho fala com aflição e treme.
- Ela forjou, Lucas, solipsizou.

Uma pausa se faz e por dois ou três segundos minha compreensão fica amarrotada.

- Lembra de Zilda, uma ex-empregada de sua mãe? Era minha espiã. Ela me falou sobre uns potes de arsênico lá na sua casa, entocados em um armário.

A história não é inteiramente destrambelhada. A filha da puta realmente guarda veneno. Nunca comentei uma vírgula a respeito, mas sempre achei estranho pois nunca vi utilidade nem necessidade naquilo. E aquele veneno? Seria algum dia destinado a mim? Teria ela a coragem de me exterminar como se eu fosse um rato?

- O desmantelo nunca mais foi reparado. O tempo pode secar muitas coisas. Mas quando o confisco é grande, a memória não se apaga.

A conversa me faz oscilar entre a irritação, a curiosidade e uma vontade, difícil de controlar, de escapar dali. Resolvo encurtar o papo.

- E o que você pretende ao me contar tudo isso?
- Lhe fazer um pedido.
- Qual?
- Mate-a.

O imperativo me fulmina. Eu sempre quis matá-la. Talvez falte um empurrãozinho. Não posso negar que a idéia me atrai. Cortá-la, picá-la milímetro a milímetro, que seria o modo mais honrado de dar fim àquelazinha. Ou mesmo um ato ligeiro, um tiro, uma bala veloz... Mas sou muito mole. Minha lassidão não permitiria.

- Você é louco? Você quer que eu mate a minha própria mãe? – indaguei com voz aprumada.
- Sim. E logo.
- O que ela te fez?
- Tenho que ir agora.

O estranho sai em uma passada magoada, arrastando a perna doente. Parecia que a qualquer momento o chão pudesse ser extraído de seus pés.

Uma vertigem toma conta de mim. No caminho de volta, a confusão é o enredo. A manhã seguinte é a de sexta. E toda sexta, antes do nascer do sol, minha mãe sai sem dizer o seu destino e chega não raro no outro dia. Aproveito sua ausência para inspecionar a casa. Reviro seu quarto e o porão. Nada suspeito. Mas quando abro a porta do armário, noto o pote de veneno, mencionado pelo estranho de vermelho. Reparo no rótulo as mesmas inscrições do embrulho. Que relação minha mãe tem com tudo isso? Qual o motivo de tanto ódio? Por que ela guarda o pote? Mudávamos de endereço, de cidade e até de estado sem motivo aparente. O dinheiro dela não tem origem identificável. Vivemos de uma herança deixada por parentes que nem sequer aparecem em álbuns de fotografia.

Caminho até a cozinha com o pote de veneno na mão. Ao meu redor, um ambiente levemente desarrumado. Melhor dizendo, descabelado e fiel a mim. Enquanto sorvo o local com a minha tontura, enxergo aos poucos a beleza que é a minha vida. O meu lugar incontestável é a preguiça. Estar à toa, ser contemplativo, não render nada a ninguém. Não quero mais alguém a meu lado me cobrando o tempo todo para que eu saia desse lugar, desse quente lugar.

Devo a minha libertação ao estranho de vermelho, que com sua proposta me transfere uma carga de ação insuportável para mim. Resta-me uma única coisa a fazer: ir embora. Seguir para algum canto onde não se tenha notícias minhas, onde todos me desconheçam e eu possa viver em paz com minha indolência.

Não vou fazer isso agora. Quero olhar uma última vez para ela, em agradecimento. Enquanto isso arrumo as malas, apenas com roupas e pertences. Alminha, no pequeno jardim, destrói algumas flores. Olhar para o dia me cansa pela espera.

Já se passava uma semana e ela, que saiu na sexta, não havia voltado. Seu feito é inédito. Até na hora da minha libertação, ela arranja um jeito de me castigar, de arremessar o meu prazer para um ponto do tempo que está fora da costura. Muito esquisita essa ida sem retorno. E se ela já sabe dos meus planos? E se ela e o estranho de vermelho são aliados e não inimigos? Será que minha vida está em risco, logo agora que estou pronto para romper com o que me agarra?

Na caixa de correspondências, mais um pacote com as mesmas inscrições. Desta vez dois bilhetes. O primeiro diz: “Já que você não se manifesta, devo tentar outro caminho. E este será bem pior para você”. E no outro, mais uma frase caliginosa: “A náusea se engrandece porque o ciclo não se interrompe”.

Não devo ficar aqui nem mais um minuto. Já é tarde da noite. Partirei no dia seguinte. Eu e minha trouxa magra.

Enfim, a manhã do outro dia. Acordo de um sono que praticamente não existiu. No espelho vejo um rosto excessivamente feio. Pego minhas coisas e quando estou atravessando a sala em direção ao portão da rua, ela está lá. Minha mãe retornou.

- Para onde você vai?
- Arranjei trabalho – disfarcei
- Vamos ver quanto tempo isso dura

Ela carrega um pacote familiar na mão.

- Um garoto de bicicleta jogou esse embrulho por cima do muro. Desta vez, é para mim.
- Tenho que ir. Estou atrasado.

Olho pela última vez para ela, esperando ter conseguido esconder que se trata de uma despedida. Passo pelo pequeno jardim. Alminha dorme. Ando pelo corredor que dá acesso ao portão. Já na rua, eu corro. Corro o mais veloz que posso e pela primeira vez a claridade da manhã não me propõe um desafeto.

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segunda-feira, janeiro 01, 2007

Festa na Casa de João Paulo Procópio

A morte surge em uma conversa e à mesa. Isso só depois de Sofia e Fernanda terem se retirado para dançar. Duas meninas gentis e promissoras. 2007 será bom depois daqueles abraços quentes, não é mesmo Vagulinha? Um gole de vinho aqui, outro ali e mais outro acolá. Luz de vela serve de isqueiro e no final lambe o papel. Sinal de que devemos ir para a pista de dança também. Eu e Vagulinha. Sábia decisão, pois bastou botarmos o pé fora da grama que a chuva apertou feio no terreno descoberto.

A morte é como Adélia diz: morre-se. E não se resolve dentro da gente. Mas e a vida? E a vida o que é diga lá, meu irmão? – as pessoas cantam quando a eletricidade dá o cano e o DJ fica de calça arriada. Festa também se faz no escuro. Com as palmas das mãos improvisamos um batuque singelo para entoar as canções que alegram a nossa alma. A gente toda do lugar não está menos embalada, nem menos flutuante. Assumimos as nossas reverberações. Chamamos na chincha, sem bronca. Cada samba é um peixe graúdo e a pista é o barco da memória.

Fernanda beija o anfitrião. Depois se instala em um canto e segue beijando a noite inteirinha uma, duas, três, incontáveis bocas. É sem fila a oferta da doçura. É um verso a mais na canção de Gonzaguinha.
Eu e Vagulinha trocamos palavras e carícias e canduras. Eu digo que quero agrasalhá-la e ela ri do mistério do termo atrapalhado. Gralha que é parente do corvo que é poesia de Poe. Gralha que sou eu, pessoa tagarela. Tagarelice esquenta? A luz volta e Tim Maia vem para nos dizer que eles agora estão numa relax, numa tranqüila, numa boa. Nós também estamos.

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